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Ânsia de confirmar viés lulista leva propaganda russa a ser tratada como notícia

Protesto contra o presidente russo, Vladimir Putin, na Cidade do México no dia da invasão à Ucrânia, 24 de fevereiro (Foto: EFE/Isaac Esquivel)

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Provavelmente você ouviu a torto e a direito que o presidente Lula havia oferecido a Vladimir Putin uma proposta para fazer a paz entre a Rússia e a Ucrânia, invadida e devastada por ele há um ano. Que proposta seria essa? Não tem uma proposta. Conheça as sutilezas da máquina de propaganda russa.

Confesso que sou fascinada pela máquina de propaganda que Putin montou, é uma das manifestações mais palpáveis do mal e, ainda assim, consegue se infiltrar em sociedades democráticas. Em 2020, fiz um artigo aqui na Gazeta do Povo detalhando o funcionamento dessa verdadeira máquina de guerra.

Quando se completa um ano da invasão da Ucrânia, o governo Putin busca formas de mostrar ao próprio povo que não está sozinho na guerra. O discurso dele misturou narrativas que, aqui no Brasil e em todos os países ocidentais, são ideologias de grupos políticos opostos.

O governo Lula fez um esforço monumental em pregar para seu cercadinho que nosso presidente lideraria uma resolução da ONU pelo final da guerra.

Ao defender a invasão da Ucrânia, o ditador russo fala em defesa dos valores tradicionais como a família e o cristianismo, passando por temas como homossexualidade e ideologia de gênero. No mesmo discurso, em defesa da mesma coisa, diz que está lutando contra o nazismo, num contexto em que pinta de nazista quem não é. Parece que juntamos os gritos mais altos da direita e da esquerda em um só caldeirão.

Como o Brasil entra nessa história? Com um olhar atento dos russos para as movimentações internacionais, algo essencial para que as operações de guerra de desinformação tenham sucesso. Nesse caso, teve. O governo Lula fez um esforço monumental em pregar para seu cercadinho que nosso presidente lideraria uma resolução da ONU pelo final da guerra. Obviamente ninguém do governo falou isso dessa forma, mas os influencers amigos e até jornalistas chapa-branca colocaram a coisa desse jeito.

Fica parecendo que o Brasil é conivente com toda a narrativa de “desnazificação”, mentirosa e grave.

Na realidade era a sexta resolução da ONU pelo fim da guerra. Ela não foi apresentada pelo Brasil, mas patrocinada por 60 países e capitaneada pela União Europeia. O Brasil conseguiu inserir um trecho do texto, como todos os outros países que participam da resolução podem conseguir. O trecho brasileiro é um tanto problemático porque fala em “fim das hostilidades” no conflito entre Rússia e Ucrânia. O parágrafo central fala em fim da invasão russa. Equiparar as duas coisas é bem problemático e, ideologicamente, não parece ser algo de esquerda.

A esquerda brasileira vive dizendo para não se confundir a reação do oprimido com a violência do agressor. Também adora dizer que paz não é ausência de conflito, é presença de justiça. Ao dizer que “quando um não quer, dois não brigam”, Lula contraria princípios caros à esquerda. Mas o Rei Sol pode tudo, danem-se os princípios.

Nosso país tem uma política de neutralidade diplomática, jamais condenou seu parceiro e “seus satélites”, como dá a entender a autoridade russa.

Voltemos ao nosso papel na pacificação, que na prática é inócuo, mas serve para capitalizar politicamente aqui no Brasil. Ele acontece bem quando existe um interesse da Rússia de mostrar que nem todo mundo acha errada a invasão da Ucrânia.

Perceba como essas operações são interessantes, sofisticadas e enganam sistematicamente a imprensa ocidental. De um lado, Lula tem interesse em se projetar nacionalmente com a imagem de líder internacional. De outro, a Rússia quer formar um grupo de apoiadores da invasão fora do seu círculo de países-satélite ou dependentes. Não tendo isso no mundo real, lança mão de uma operação de imprensa interessantíssima.

O jornalista Sam Pancher que cavou os rastros de tudo e contou no Twitter. Reconstruo a história para vocês. A Agência Oficial de Notícias russa TASS publicou uma matéria com o título “Moscou analisa as iniciativas de paz do Brasil na Ucrânia”. (link para o original)

Ao dizer que “quando um não quer, dois não brigam”, Lula contraria princípios caros à esquerda. Mas o Rei Sol pode tudo, danem-se os princípios.

Ali tem um trecho da fala do vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin. “Tomamos conhecimento das declarações do presidente do Brasil sobre o tema de uma possível mediação, a fim de encontrar caminhos políticos para evitar a escalada na Ucrânia, corrigindo erros de cálculo no campo da segurança internacional com base no multilateralismo e considerando os interesses de todos os atores. Estamos examinando as iniciativas, principalmente do ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação ‘no terreno’.”, diz o trecho citado.

Qual foi o efeito? O esperado. Essa declaração coincide com os esforços políticos do governo brasileiro para se posicionar no noticiário. Rapidamente o material de propaganda do governo russo foi espalhado. E para quê a Rússia iria fazer isso? Porque a fala completa tem outra parte, bastante assustadora, que o Brasil não endossa. Mas, ao dar o espaço que foi dado e comentar a matéria da agência TASS, fica a impressão de que endossa os ideais russos, o que é útil para a propaganda de guerra.

Ao colocar o nome de Lula e o do Brasil nessa salada, inferindo que apoiamos isso, a Rússia faz o que sabe fazer na área da desinformação.

Lendo com atenção, você vai entender. O público brasileiro fica só com esse oba-oba do presidente tentando se promover politicamente. Na região de influência da Rússia, a leitura será diferente. Como eles conhecem o conteúdo completo, ficarão com a impressão de que o Brasil endossou isso que você lê abaixo. Os grifos e comentários entre parênteses são meus:

Pergunta (agência TASS): O presidente brasileiro Leonid Lula da Silva disse que está pronto, se necessário, para atuar como mediador na condução de negociações diretas com o líder russo Vladimir Putin e o líder ucraniano Vladimir Zelensky. Além disso, o presidente brasileiro propôs a criação de um novo formato internacional para ajudar a resolver o conflito na Ucrânia. Como Moscou avalia as propostas brasileiras de mediação? A Rússia considera conveniente agora criar um formato internacional para um acordo na Ucrânia?

(A pergunta da agência TASS deixa bem claro que não existe uma proposta de paz, como a matéria compacta dá a entender. Era algo que o Brasil já sabia, Lula se propõe a mediar o conflito e fala numa comissão internacional.)

Resposta de Mikhail Galuzin: A opinião do Brasil, que é nosso parceiro estratégico bilateralmente e no cenário mundial, com o qual interagimos construtivamente nos BRICS, G20, ONU e seu Conselho de Segurança - onde este país está agora representado como membro não permanente - é importante para nós.

Gostaria de observar que a Rússia aprecia a posição de equilíbrio do Brasil na atual situação internacional, sua rejeição a medidas coercitivas unilaterais tomadas pelos Estados Unidos e seus satélites contra nosso país, a recusa de parceiros brasileiros em fornecer armas, equipamentos militares e munições ao Regime de Kiev. Ao mesmo tempo, vemos a forte pressão exercida sobre Brasília por Washington. Tal posição soberana merece respeito.

Talvez exista mesmo uma tentativa de saída honrosa usando países que adotam a neutralidade. O fato é que não sabemos.

Chamamos a atenção para as declarações do presidente brasileiro L. Lula sobre a questão de uma possível mediação a fim de encontrar caminhos políticos para evitar a escalada na Ucrânia, corrigir erros de cálculo no campo da segurança internacional com base no multilateralismo e levando em consideração os interesses da todos os jogadores. Estamos estudando as iniciativas, antes de tudo, pelo ângulo da política de equilíbrio que o Brasil vem desenvolvendo e, claro, levando em consideração a situação que se desenvolve “no terreno”.

Ao mesmo tempo, gostaria de lembrar mais uma vez que estamos prontos para atingir os objetivos da NWO - a proteção dos habitantes de Donbass, a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, bem como a eliminação de ameaças à segurança da Rússia provenientes de seu território - por meios políticos e diplomáticos. Um obstáculo neste caminho é a posição absolutamente não construtiva de Kiev sobre esta questão, que, por sugestão do Ocidente, proclamou abertamente uma política de infligir uma derrota militar à Rússia "no campo de batalha".

Talvez o nome do Brasil, que soa simpático no exterior, tenha sido apenas usado como mais uma narrativa de Putin.

Atualmente, a retomada do processo negocial depende apenas da disponibilidade das autoridades ucranianas e dos seus curadores ocidentais para uma percepção sóbria das actuais realidades geopolíticas. Nesse sentido, recomendamos aos nossos parceiros que redirecionem seus esforços para o trabalho direcionado com Kiev, bem como com os Estados Unidos e outros países da OTAN, que continuam a expandir a gama de suprimentos de armas, o que inevitavelmente levará a uma escalada do conflito.

Se o Ocidente e Kiev quiserem se sentar à mesa de negociações, devem primeiro parar de bombardear as cidades russas e depor as armas. Depois disso, será possível conduzir uma discussão com base em novas realidades geopolíticas.

Não parecem declarações de quem está disposto a construir a paz. E fica parecendo que o Brasil é conivente com toda a narrativa de “desnazificação”, mentirosa e grave. Há problemas com neonazistas na Ucrânia, na Rússia e em toda a região dos Bálcãs. Não há, no entanto um governo nazista como infere Putin para justificar a invasão.

Além disso, os Estados Unidos são parceiros históricos do Brasil. Nosso país tem uma política de neutralidade diplomática, jamais condenou seu parceiro e “seus satélites”, como dá a entender a autoridade russa. Para terminar, existe a clara imposição de deposição de armas somente do lado ucraniano para que se inicie uma conversa. Ao colocar o nome de Lula e o do Brasil nessa salada, inferindo que apoiamos isso, a Rússia faz o que sabe fazer na área da desinformação.

Talvez o nome do Brasil, que soa simpático no exterior, tenha sido apenas usado como mais uma narrativa de Putin. Talvez exista mesmo uma tentativa de saída honrosa usando países que adotam a neutralidade. O fato é que não sabemos. Mas este fato não foi tão noticiado quando a proposta de paz inexistente.

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