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Brasil virou caso de teste sobre qual o limite do combate a fake news, diz New York Times

Jornal americano disse que atuação de Alexandre de Moraes no STF e no TSE “despertou preocupações de que seus esforços para proteger a democracia do país tenham na verdade a erodido” (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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As últimas decisões do TSE são vistas de forma bastante diferente pela imprensa brasileira e internacional. Se você me acompanha, sabe que há anos tenho mergulhado na questão de desinformação e “fake news”. Por aqui, o debate público ainda é muito primitivo, está focado naquilo que pode ou não ser dito. Não é esse o nó da desinformação.

Aqui não me proponho a uma avaliação política ou moral do que está acontecendo. Aliás, se você está em busca disso, sugiro as colunas do meu amigo Polzonoff. O tema aqui é Cidadania Digital. Tento compreender como chegamos aqui e de que forma sairemos dessa situação que é, para dizer o mínimo, incômoda e quase incompreensível para muita gente.

Na maioria das vezes, operações de desinformação de sucesso nem utilizam mentiras. São mais críveis e efetivas quando lidam apenas com fatos verificáveis.

Lidar com a mentira é uma atividade humana desde que desenvolvemos a linguagem. Os esforços internacionais no combate à desinformação já passaram desse ponto específico há muito tempo. Cometemos o erro primitivo de traduzir “fake news” como notícias falsas ou mentiras. Não são e, arrisco dizer, na maioria das vezes, operações de desinformação de sucesso nem utilizam mentiras. São mais críveis e efetivas quando lidam apenas com fatos verificáveis.

Isso sempre existiu, faz parte do treinamento de inteligência militar há décadas. Com as redes sociais, o jogo muda primeiro pela rapidez e depois pela capacidade de coletar informações individuais que apontam os melhores indivíduos a envolver nas operações. Melhor explicar com exemplos. Como alguém pode contar uma grande mentira usando apenas verdades? Volto ao ano de 1987 e um comercial da W/Brasil para a Folha de São Paulo.

A imagem inicial na tela é de uma foto vista de muito perto, vemos pixels, não dá para saber o que é. Na medida em que o locutor fala, a câmera vai se afastando e formando uma imagem. Diz a locução: “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo, o número de desempregados caiu de seis milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o produto interno bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar. Aumentou o lucro das empresas de 175 milhões para 5 bilhões de marcos. E reduziu a hiperinflação a no máximo 25% ao ano. Este homem adorava música e pintura e, quando jovem, imaginava seguir a carreira artística”. Nesse momento, a imagem fica nítida na tela. O homem é Adolf Hitler.

Não há uma única mentira no texto. Ocorre que contextualizar a história de Hitler omitindo suas perversidades forma uma grande mentira. Como isso seria usado nas redes sociais numa operação de desinformação? Aí damos um passo além. Meu exemplo preferido é pouco conhecido aqui no Brasil. Gosto dele porque não desperta paixões.

Trinidad e Tobago, no Caribe, é um país que se divide entre eleitores de etnia indiana e etnia caribenha. A tão falada Cambridge Analytica foi contratada pela candidata a primeira-ministra do partido dos indianos, que estava atrás nas pesquisas.

Foram coletados dados de comportamento trivial da população, todos aqueles que as plataformas de redes sociais disponibilizam, com análise de inteligência artificial. Era necessário mudar o voto dos jovens. Como isso foi feito? Foi lançada uma dessas campanhas com influencers que parecem espontâneas. Ela pregava a abstenção eleitoral como ato de protesto contra a corrupção no país.

Havia um sinal específico – os braços cruzados adiante do corpo – e uma coreografia que eram repetidos nas redes sociais pelos jovens. Começou a virar uma febre juntar a própria turma para fazer a coreografia dos que não iriam votar, postar nas redes sociais e receber uma chuva de likes e comentários. Todos os jovens aderiram. Influencers e famosos aderiram também. Inicialmente houve um impulsionamento, mas depois a maioria era legítima, gente que aderiu voluntariamente.

Eram jovens das duas etnias, tanto indianos quanto caribenhos. De que forma a Cambridge Analytica pretendia mudar as eleições a favor da candidata que a havia contratado se também o eleitorado dela ameaçava não ir às urnas? Aí é que está o pulo do gato das operações de desinformação. Tudo era tratado como se fosse uma reação espontânea das pessoas, mas não era. A ação foi planejada tendo em conta os dados coletados via redes sociais.

Eles revelavam que jovens caribenhos têm mais independência dos pais do que os indianos. Na comunidade indiana, existe a liberdade para aderir a modinhas e socializar com os amigos. Porém, na hora do “vamos ver” a família vem em primeiro lugar e o jovem obedece os pais sem questionar.

Foi assim. Todo mundo aderiu nas redes à campanha pela abstenção contra a corrupção. No dia da eleição, os jovens indianos compareceram às urnas em massa e votaram na candidata indicada pelos pais. Ela ganhou.

Publicações de órgãos de imprensa ou de campanhas oficiais acabam sendo colocadas no mesmo balaio desse sistema dinâmico. Elas são diferentes porque têm uma curadoria e um responsável.

Operações bem sucedidas de desinformação eleitoral são feitas com esse nível de sofisticação. Derrubar conteúdos é suficiente para impedir que elas tenham sucesso? Não. Selecionar o que pode ou não ser dito impede o sucesso de estratégias tão sofisticadas? Não.

Depois de um escândalo internacional, a Cambridge Analytica acabou encerrando suas atividades. Mas a atividade em si permanece viva e representa uma ameaça real à democracia. Pela saúde da democracia, o correto seria que as pessoas soubessem da maquinação por trás da campanha aparentemente espontânea de não votar em protesto contra a corrupção.

Caso esses jovens que aderiram soubessem realmente do que se tratava, teriam tido o mesmo comportamento? Não há como saber. Mas é certo que eles tinham o direito de saber que estavam sendo manipulados por meio dos dados individuais que revelam como eles se comportam. Esses dados são vendidos pelas redes sociais aos seus anunciantes. Na maioria das vezes, são empresas. Quando entramos na seara política, a coisa começa a complicar pela mistura entre dois tipos de poder.

O poder econômico é decisivo em eleições de diferentes formas, mesmo quando as pessoas têm a consciência de como ele atua. Quando se mascara essa atuação, as coisas ficam muito complicadas e não dá para dizer que as decisões tomadas pelos eleitores são conscientes.

Tivemos anos para evoluir em sistemas conjuntos para que as instituições públicas, todas elas, estivessem unidas e vigilantes. O poder governamental e político precisa traçar um limite de ação em que não seja contaminado ou manobrado pelo poder econômico. Ainda não há uma receita de bolo sobre isso e muitos países estão tentando. As alternativas mais avançadas estão na Alemanha, Taiwan e Estados Unidos.

Por aqui, o foco ficou inteiramente no conteúdo, sem atenção devida ao contexto, à dinâmica digital e às manipulações.

Publicações de órgãos de imprensa ou de campanhas oficiais acabam sendo colocadas no mesmo balaio desse sistema dinâmico. Elas são diferentes porque têm uma curadoria e um responsável. O tratamento precisa ser diferente. Quando o foco fica no conteúdo, o tratamento é similar para situações muito diferentes. É o caminho pelo qual o Brasil optou.

O mundo todo tenta uma solução para equilibrar a economia digital e o mercado predatório das Big Techs com as instituições públicas e a democracia.

Para o New York Times, o Brasil se colocou em um caminho de testes sobre os limites para combater a desinformação. “Ao permitir que uma única pessoa decida o que pode ser dito online no período que antecede as eleições de alto risco, que serão realizadas em 30 de outubro, o Brasil se tornou um caso de teste em um debate crescente sobre até onde ir no combate às fake news”, diz o jornal.

Na CNN, o jornalista Iuri Pitta relatou ter conversado com funcionários de diversas redes sociais. Como as sedes da maioria ficam nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão é um valor nacional, eles relatam dificuldades em explicar o que havia sido decidido como regra por aqui.

“A decisão provocou protestos de apoiadores do presidente de direita Jair Bolsonaro, bem como preocupação de muitos especialistas em direito da internet e direitos civis, que disseram que representava uma expansão de poder potencialmente perigosa e autoritária, que poderia ser abusada para censurar legítimos pontos de vista e balançar a disputa presidencial”, completa o New York Times.

Não há dúvidas de que teremos uma semana muito agitada. As discussões nacionais sobre o tema já estão em ebulição. Agora, os olhos da comunidade internacional também estão voltados para nós. O mundo todo tenta uma solução para equilibrar a economia digital e o mercado predatório das Big Techs com as instituições públicas e a democracia. A opção do Brasil foi feita. Será avaliada internacionalmente.

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