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Deveríamos ter comemorado a volta ao Brasil de um intelectual com longa carreira universitária, que estava na Espanha, Richard Miskolci. Ele tem uma obra extensa, de décadas, reconhecida aqui e no exterior. Infelizmente, ele foi recebido com um cancelamento por falsas acusações de transfobia, vindas de gente que evidentemente não compreende a obra dele.
O professor tem décadas de carreiras, pesquisas conduzidas, artigos e livros publicados. A contribuição dele é reconhecida no Brasil e exterior como inestimável nos campos de Direitos Humanos e sexualidade. Mais recentemente, pesquisa as consequências do uso de redes sociais nas políticas de saúde. Richard Miskolci contesta o conceito de cisgeneridade. Por isso, foi declarado “persona non grata” por associações e ativistas que produziram uma nota no último dia 7 de novembro em evento promovido pela Revista Cult e pelo Sesc.
A nota é tão superficial quanto autoritária. Deveria ter sido terminantemente repudiada tanto por universidades quanto por associações. Não foi. Mas foi repudiada por gente interessada em preservar a liberdade de cátedra, fundamental para que os estudantes tenham acesso a conhecimento reconhecido pela comunidade científica internacional e não a doutrinação política, seja de esquerda ou de direita.
“Dia 7 de novembro de 2023, Richard Miskolci foi declarado como persona non grata no âmbito epistemológico e ético do transfeminismo brasileiro.
Consideramos que sua ofensiva acadêmica contra o conceito de cisgeneridade, bem como práticas transepistemicidas, tuteladoras e extrativistas, são irreconciliáveis com o enfrentamento à transfobia.
Quem desejar subscrever o título, me procure. No decorrer da próxima semana, o ofício será encaminhado oficialmente para Universidade onde Miskolci leciona”, diz a publicação no Instagram de uma influencer que se autointitula ativista.
Fica claro que a intenção é cancelar, ou seja, impedir que o professor faça e divulgue livremente sua pesquisa com os critérios científicos que honra por décadas. O pecado cometido por ele é resistir a negar a própria pesquisa.
Vamos à nota:
São Paulo, 7 de novembro de 2023
Cumprimentos,
Através teste título, em nome das organizações, pensadoras e ativistas que o subscrevem, declaramos publicamente que Richard Miskolci passa a ser conhecido como ‘persona non grata’ no âmbito espistemológico e ético do transfeminismo brasileiro.
A decisão se dá no contexto em que Miskolci tem atuado no sentido contrário a conceitos fundamentais do transfeminismo, como a cisgeneridade. Seu evidente menosprezo pela produção epistêmica de pessoas trans, se estende também às comunidades não binária, utilizando retóricas negacionistas e que contribuem para o trans-epistemicídio da produção intelectual de pensadoras e pesquisadoras trans.
Durante o evento do I Seminário Queer - cultura e Subversões das Identidades, organizado em 2015 pela Revista Cult em conjunto com o Sesc Vila Mariana, Miskolci explicitou sua rejeição em relação ao conceito de cisgeneridade, posição que vem sendo reafirmadas e que no ano de 2021, foi reiterada por meio de um artigo publicado no jornal gaúcho Extra Classe.
Ante ao exposto, da dificuldade de um diálogo e falta de posição crítica em relação ao cissexismo, e por manter posição que não demonstra intenção em rever suas afirmações que trazem impactos deletérios em relação a produção Transepistêmica, aproveitamos a ocasição do seminário Trans e Travestis, produzido pela Revista Cult em colaboração com o Sesc Pompeia, para declarar que tais posições não serão toleradas em qualquer âmbito e que a sua defesa representa um passo contrário à luta antitransfobia Não se tratando simplesmente do ‘livre exercício do contratidório’, mas de deturpações deliberadas de fantasmagorias obsoletas e epistemologicamente violentas - deturpações que, efetivamente, têm o potencial de ser instrumentalizadas por movimentos autoritários e conservadores.
Considerando o avanço de uma agenda anti-trans que teem utilizado espaços acadêmicos para a disseminação de retóricas que sustentam as posições mencionadas, declaramos formalmente que Richard Miskolci passa a ser reconhecido como pessoa non grata. Em outras palavras, enquanto o mesmo continuar publicamente a a reafirmar tais posições cisativistas sem adotar ações reparadoras, consideramos sua presença inaceitável e contraditória nos espaços dedicados à luta anti-transfobia.” (grifos meus)
Provavelmente você não entendeu qual é o problema. Os autores do texto usam clichês de militância digital que supostamente dão uma aura de erudição, mas não fazem nenhum sentido. É gritante o contraste entre a posição de autoridade e a gritante dificuldade de expressão no idioma formal. A nota, além de ser um atentado à gramática e à pontuação, é um desafio a qualquer tentativa de organização lógica do pensamento.
Quem escreve dessa forma obviamente não tem repertório para compreender a complexidade e profundidade do trabalho de Richard Miskolci. Ele é um intelectual reconhecido que leva a sério suas pesquisas, algo que tem sido sistematicamente repudiado pelas hordas de influenciadores que tentam se qualificar como intelectuais que não são. No entanto, precisamos reconhecer que se qualificam como autoritários de forma inequívoca.
Richard Miskolci tem sido perseguido desde que publicou o livro “Batalhas morais: Política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora”. É uma discussão sofisticada sobre conceitos que não invalida lutas justas. Nessa publicação, o intelectual desafia o conceito de cisgeneridade, tido como axioma por influencers sem condição cognitiva de compreender a crítica que ele faz. É preciso ficar muito claro que a oposição dele não é ideológica, é científica.
O conceito de cisgênero implica que todo cis estaria adequado ao que a sociedade espera dele, seja como indivíduo ou como ator social. Isso não acontece com ninguém, todos enfrentamos inadequações e expectativas alheias que não somos capazes de atender.
Deixo que o próprio Richard Miskolci explique sua teoria, agora em linguagem muito fácil de compreender.
“A polêmica toda é sobre cisgeneridade. No meu livro – o Batalhas Morais - eu uso fontes feministas que questionam a divisão entre trans e cis.
Meu ponto é que inconformismo de gênero é de todos. Todo mundo, inclusive heteros, tem suas ‘inadequações’. Quando uma mulher é xingada no trânsito ou questionada por ser independente, por exemplo, isso é a prova de que ela não está sempre em acordo com as expectativas sociais de gênero.
As pessoas trans querem o monopólio do inconformismo de gênero, o que é autoritário. Se só existir trans como inconformismo então toda criança inadequada, por exemplo, pode ser um/a trans em potencial. O fato é que podemos e estamos em desacordo, vira e mexe, com o que a sociedade espera de nós. Democrático é defender que todos possam ser como querem. Querer uma forma única é autoritário.
Minha perspectiva é de que todos sofremos com as demandas e imposições sociais, daí sermos potencialmente todos aliados na construção de uma sociedade mais igualitária.
A posição trans é de que só eles e elas são ‘diferentes’ e todos os outros são cis, supostamente adequados ao sexo/gênero assignado ao nascer. Assim, ser inconformista ou questionar as normas é monopólio deles e delas. E quem disser o contrário é transfóbico”, explica Richard Miskolci. (grifos meus)
Mais claro, impossível. Eu concordo com ele, todos enfrentamos um dilema entre o que somos e a expectativa social sobre nós. Pode ter quem discorde e não há nenhum problema. O problema é agir como a Santa Inquisição, exigindo que pesquisadores se retratem sobre seu trabalho científico sob pena de cancelamento.
Não podemos compactuar com o autoritarismo de grupos que decidem declarar que alguém é “persona non grata”, cuja presença é considerada inaceitável. Isso valeria para qualquer um, piora quando o motivo é defender conceitos e pesquisas reconhecidos pela comunidade científica internacional.
Parece que estamos distantes no tempo de uma sociedade que admite mandar Sócrates tomar cicuta ou chantagear Giordano Bruno: ou ele nega que a Terra orbita ao redor do Sol ou será enforcado. Esse mesmo raciocínio surge na explosão da militância digital.
É algo tão absurdo que boa parte das pessoas decide calar. Há os canalhas que ainda tentam argumentar, acredite. Não seria violação à liberdade de cátedra porque foi feito fora da universidade. Isso não faz nenhum sentido, já que o cancelamento tem impacto tanto na produção intelectual feita na universidade quanto em sua divulgação.
Uma professora universitária da área de psicologia, cujo trabalho também é reconhecido internacionalmente, resolveu furar a bolha. Keila Deslandes, da Universidade Federal de Ouro Preto, fez um abaixo-assinado online a favor de Richard Miskolci.
Você pode assinar e compartilhar o abaixo-assinado pela liberdade de cátedra por meio deste link. Eu convido vivamente que o faça e, inclusive, já fiz. A lógica da economia da atenção parece se impor pela virulência que provoca o silêncio da maioria. É urgente romper essa lógica.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise