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Como aproveitar o máximo do mundo digital com a escalada dos criminosos virtuais

(Foto: Unsplash)

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Esta semana, um caso cinematográfico me chamou a atenção e até escrevi sobre ele sob o ponto de vista da corrupção e moralidade. Mas acabou me escapando algo bem mais presente na vida de todas as famílias, como usar os avanços digitais num universo inundado de criminosos. O caso era o do tal curso de estelionato, um deboche completo. Era um empreendimento conduzido por criminosos no Rio de Janeiro que tinha até um manual de como dar golpes virtuais.

Eles arrumaram alunas de fora da cidade que foram até lá para cursar a modalidade presencial. Usando as técnicas que aprenderam, elas amealharam R$ 300 mil em golpes. Daí os professores deram um golpe nas estelionatárias e ficaram com o dinheiro. Não acaba aí.

Todos conhecemos alguém que já perdeu dinheiro num golpe desses. Aliás, eu não conheço ninguém que não tenha um amigo ou familiar que foi vítima desses expedientes.

As alunas contrataram milicianos para sequestrar os “professores” e pedir os R$ 300 mil como resgate. A TV Bandeirantes mostrou os vídeos dos homens torturados num apartamento em Copacabana. Um deles pedia que “em nome de Jesus” fizessem o pix pela libertação. As famílias dos homens procuraram a polícia, que prendeu todo mundo. Foram para a cadeia os “professores”, as alunas de estelionato e também os milicianos.

E agora vamos ao que mais interessa ao cidadão comum, o tipo de golpe que eles cometiam. São todos relacionados às facilidades que a tecnologia trouxe para que todos nós façamos as tarefas do dia a dia, como pagamento de contas e transferência de dinheiro. Todos conhecemos alguém que já perdeu dinheiro num golpe desses. Aliás, eu não conheço ninguém que não tenha um amigo ou familiar que foi vítima desses expedientes.

Nas áreas dominadas pelo crime organizado existe um esquema de utilizar laranjas para abrir diversas contas bancárias.

Duas semanas atrás, contei aqui na coluna Cidadania Digital um caso pessoal do roubo dos meus dados para uso da minha conta da Netflix. Não me causou grandes prejuízos. Mas outro, em que eu quase caí, poderia ter sido uma grande dor de cabeça. E esse é justamente o tipo de ação em que os criminosos atuam.

Tive um problema em uma conta bancária e postei no Twitter marcando o perfil do banco, já que não conseguia ser atendida pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor. Uma conta que parecia a do banco pediu para mandar informações em privado. Minutos depois, recebi uma ligação. O número que apareceu no identificador de chamada do celular era o mesmo do Serviço de Atendimento ao Consumidor do banco. Sim, era o número do banco que aparecia, mas eu não sabia que é possível fraudar isso também.

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A pessoa falava como um atendente, muito educada e técnica. Quando pediu que eu deletasse o aplicativo do banco e queria minhas senhas, desconfiei e desliguei. Mudei todas as minhas senhas, com medo. A conta ainda insistiu em mensagem para eu observar que a ligação era feita do mesmo número do banco. Logo começaram a aparecer outros usuários do Twitter me alertando que aquela conta era fake e aplicava golpes digitais. A conta foi denunciada por várias pessoas e acabou suspensa. Aposto que os criminosos não tiveram problemas para criar uma nova e seguir com o empreendimento.

Essa é uma modalidade que, àquela altura, eu ainda não conhecia. Os criminosos se aproveitam das reclamações feitas em redes sociais porque há um problema crônico de atendimento aos clientes. As pessoas acreditam e eles dão um jeito de sequestrar e limpar a conta bancária. Outras modalidades são mais conhecidas. Existe o boleto falso, que se parece exatamente com o original e quase sempre tem exatamente o mesmo valor. A pessoa acredita que está pagando uma conta mas repassa o dinheiro aos criminosos.

Os avanços digitais são feitos para facilitar e agilizar o dia a dia do cidadão. Quem está aproveitando desses avanços são os criminosos.

Os golpes do pix são ainda mais famosos. O clássico é aquele em que os criminosos brincam com os sentimentos mais importantes das pessoas, fingindo que uma pessoa amada foi sequestrada e pedindo o resgate. Sempre nos perguntamos por que a pessoa não liga para o suposto sequestrado. É fácil pensar nisso quando já conhecemos o golpe mas, na surpresa, as emoções podem falar mais alto.

Também é muito famosos o golpe em que os criminosos se passam por algum conhecido ou contato profissional e pedem uma transferência em pix. Já vi um caso em que a pessoa invadiu o WhatsApp comercial de uma empresária e editou áudios dela com instruções de pagamento. Outra situação em que nos perguntamos por que a vítima não ligou para o conhecido. Ocorre que a manipulação emocional é profissional, muita gente cai.

Como navegar nesse mar bravo? A solução de muitas pessoas, sobretudo idosos, tem sido simplesmente fugir de todas as facilidades digitais que temos hoje em dia.

São comuns as ondas criminais. Uma hora eles se especializam em assalto a banco, outra em sequestros e agora na área digital.

Esses dias comentava com um amigo o caso de uma pessoa que eu amo e decidiu usar suas contas bancárias como se estivéssemos em 1990. Nada de pix e transferências virtuais, muito menos aplicativo de banco em celular. A solução foi lidar com dinheiro indo à agência, guardando efetivo e usando talões de cheque. O amigo responde dizendo que a sogra fez exatamente o mesmo.

Observando as consequências sociais, estamos diante de uma bizarrice absolutamente injusta. Os avanços digitais são feitos para facilitar e agilizar o dia a dia do cidadão. Quem está aproveitando desses avanços são os criminosos, que conseguem delinquir com mais comodidade. Cidadãos honestos resolveram abrir mão das comodidades porque não temos uma solução para o crime.

Em todos esses golpes as transferências são digitais e registradas, valem até como prova judicial. Já vi pessoas que sofreram golpes tentando inutilmente reaver o dinheiro porque identificaram o criminoso dono da conta que recebeu o produto do golpe. Parece lógico e é. Mas os criminosos deram uma volta até nisso. Como o crime digital tem uma relação íntima com o crime organizado, identificar os donos das contas receptoras parece um avanço importante mas acaba não dando em nada.

Criamos os avanços digitais pensando em facilitar a vida dos cidadãos, sem ter como prever que o mundo do crime aproveitaria tanto essa evolução.

Nas áreas dominadas pelo crime organizado existe um esquema de utilizar laranjas para abrir diversas contas bancárias. Pessoas que moram nessas áreas e têm nome limpo emprestam seus documentos para que os criminosos abram uma série de contas bancárias. É aí que o dinheiro vai parar.

A polícia investiga e chega até o titular da conta. Quando a pessoa é chamada a depor, informa que forneceu seus documentos aos criminosos e muitas vezes comprova que nem sabia da movimentação dessas contas, jamais teve acesso a elas e nem sabia da existência de todas.

É um beco sem saída. Em alguns poucos casos de quadrilhas que já estão sob investigação, os verdadeiros operadores das contas são identificados. Há casos em que a quadrilha é presa. No entanto, conseguir o dinheiro de volta se torna algo virtualmente impossível. Isso é o que interessa a quem sofreu um golpe, reaver o prejuízo.

Sempre foi uma realidade do mundo criminal esse tipo de atualização dos golpes. Surge algo novo no mundo e os criminosos já começam a se organizar para agir. São comuns as ondas criminais. Uma hora eles se especializam em assalto a banco, outra em sequestros e agora na área digital.

Navegamos o universo digital em velocidade total sem que tenhamos capacidade para isso.

Essa realidade atual possibilita mudanças muito mais rápidas porque demanda menos trabalho operacional dos criminosos e possibilita a ação de perfis menos especializados em crime. Assaltar um banco ou sequestrar uma pessoa são atividades que envolvem muito mais risco e requerem muito mais investimento e perfis bem mais treinados. Golpes digitais democratizam o crime.

Por enquanto, a solução que a sociedade tem encontrado é se conformar com cidadãos honestos abrindo mão de comodidades porque não sabem como lidar com os criminosos. O ideal seria que as autoridades lidassem com eles, mas a velocidade de atualização ainda é um grande desafio.

Necessitamos mais do que nunca de educação para a vida digital, que progrida no mesmo ritmo dos avanços. Por enquanto, bancos mandam e-mails com avisos, a imprensa dá dicas, existem pontualmente iniciativas para alertar as pessoas.

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Parece, no entanto, que estamos enxugando gelo. O foco dessas ações educativas é, infelizmente, o avanço criminal. Na medida em que o crime avança, surge um esclarecimento de emergência. É preciso mudar esse ritmo. Criamos os avanços digitais pensando em facilitar a vida dos cidadãos, sem ter como prever que o mundo do crime aproveitaria tanto essa evolução. Agora já sabemos que isso acontece.

O samba Argumento, de Paulinho da Viola, tem uma parte que pode nos ajudar muito: “Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar.” Navegamos o universo digital em velocidade total sem que tenhamos capacidade para isso.

Chegou a hora de construir essas capacidades. Principalmente idosos e crianças precisam de um acompanhamento educacional digital mais consistente e estruturado. Construir essa estrutura é imperativo para que as pessoas às quais os avanços tecnológicos são direcionados realmente possam desfrutar da era digital.

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