Acampamento estudantil no campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, dia 26 de abril de 2024.| Foto: EFE/EPA/JOHN G. MABANGLO
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Não há como analisar hoje os protestos de rua sem entender do que se passa nas redes sociais. Desde a Primavera Árabe, iniciada em dezembro de 2010, a internet assume um papel primordial em manifestações populares. Vivemos isso aqui no Brasil e é muito provável que você tenha uma experiência e uma opinião sobre isso.

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É comum que governos ditatoriais, como Cuba, desliguem a internet do país todo quando as pessoas organizam grandes manifestações. Pode parecer, mas não é tão fácil estabelecer a relação de causa e efeito entre as redes e as ruas. Muitos fenômenos só começam a ser entendidos anos depois porque as pessoas criam subculturas nas redes.

Precisamos saber, a essa altura do campeonato, quantos são os que ouvem para entender e quantos são os que ouvem só para rebater.

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Um documentário que acaba de estrear na Netflix esclarece como esse universo é complexo e vai muito além da política, toca nas paixões e fraquezas humanas. A rede antissocial: dos memes ao caos mostra toda a história de um dos ambientes mais nocivos já criados na internet, o 4chan.

Se você nunca frequentou, um chan é como um fórum de mensagens em que todos podem abrir tópicos e postar anonimamente. O 4chan especificamente era dedicado a fãs de animes japoneses. Eles postavam ali sobre o tema. Rapidamente isso evoluiu para uma convivência sem a barreira da identidade, em que contavam piadas pesadas e faziam memes que só eles conhecem.

Quando essa comunicação escapa da bolha para o mundo, será interpretada de forma diferente. O que ali era uma piada interna pode ser lido como algo grave ou uma ameaça por alguém de fora. Se for alguém famoso, o pessoal do chan vai adorar. Há uma sensação de muito prazer no poder de enganar alguém famoso e ver suas piadas passando como verdades em redes de televisão.

O 4chan nasceu de uma ideia japonesa, o 2chan. Ambos tiveram o mesmo destino, enveredar pela política e causar caos e violência nas ruas. No Japão houve diversos episódios de ataques violentos públicos e o tema foi amplamente debatido. Mesmo assim, continuamos com o experimento de unir grupos de forma anônima.

Os membros do 4chan resolveram fazer um evento presencial, um encontro. Na primeira vez, foi a realização dos fãs de anime, todos vestidos como seus personagens. Na segunda, além disso, já havia neonazistas fazendo publicamente a saudação de Hitler. Massacres em escolas e assassinatos de pessoas foram arquitetados em fóruns do 4chan. O criador do 4chan e boa parte de sua equipe desembarcaram do projeto.

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Mas ele também teve braços políticos. Histórias que começaram como memes dentro do fórum ganharam o mundo real virando movimentos. É o caso do Occupy Wall Street, dos protestos de rua dos Anonymous e do famoso caso QAnon, ligado recentemente à invasão do Capitólio por trumpistas.

E qual a ideologia do pessoal desses fóruns? Rir da cara de quem acredita nas histórias que eles criam. Sentir o prazer de ter poder sobre outras pessoas. A fórmula de fóruns anônimos de internet tende a gerar radicalização e violência, principalmente em tempos de patrulha de discurso. Os discursos não somem, eles acabam indo para esses lugares. Quando o debate é feito às claras, as pessoas respeitam regras. Quando são caladas e recorrem a fóruns anônimos, não têm limites.

É aqui que entra o tal do aplicativo de que eu falo no título. Você sabia que os estudantes das melhores universidades dos EUA usam há anos um aplicativo nos mesmos moldes do 4chan e do 2chan? Ele se chama Sidechat.

Talvez os fundadores tenham tido a ideia elitista de que o problema não é a estrutura do anonimato, mas deixar entrar todo tipo de gente no app. Então, decidiram oferecer o produto só para estudantes das melhores universidades. Precisa ter um email válido de algumas das grandes instituições dos EUA para fazer uma conta.

A ideia é que se tornasse um palco absolutamente livre para o debate sobre o cotidiano universitário. Mas faz tempo que degringolou. Num momento em que os estudantes pisam em ovos porque são patrulhados constantemente, o Sidechat virou a forma de revanche. Já havia reclamações das universidades sobre a necessidade de ter uma moderação melhor. É algo bem difícil mesmo querendo. Tudo se faz por inteligência artificial, que não distingue ironias e sarcasmo. Os usuários dessas plataformas usam muito esse recurso e o dos memes para passar despercebidos.

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Um longo artigo na revista especializada Wired traz depoimentos de alunos falando de como o ambiente se tornou tóxico e violento. O discurso antissemita virou prato do dia. Esse ambiente, como todos os outros semelhantes, acabou desembarcando nos protestos de rua. Adivinhe quais são.

Pois é, o que estamos vendo em universidades dos Estados Unidos começa com uma organização via Sidechat. É por ele também que estudantes se coordenam para lidar com a polícia e com as autoridades da universidade. Organizam, por exemplo, ações de mandar milhares de emails como diversionismo, para ocupar a universidade com algo inócuo enquanto seguem com os acampamentos. Poderiam estar fazendo isso em qualquer outra rede social. É verdade. Mas aí teriam de se responsabilizar pelo que dizem ou por combinar ações tidas como criminosas.

Essa garantia do anonimato absoluto tira da sociedade a capacidade de dar limites morais a quem não os tem. Quando pessoas corretas pensam no anonimato, muitas vezes o defendem. Pensam nas situações em que querem fazer justiça e, se derem a cara, serão paradas. Ocorre que o anonimato também é dado aos perversos, aos que buscam apenas o caos e a destruição.

O mais importante disso tudo é ter em mente que a internet tem um impacto definitivo sobre manifestações políticas. O primeiro é o mais óbvio, a capacidade de mobilização popular das pessoas realmente interessadas numa causa. Mas o outro é a capacidade de manipular multidões e radicalizar pessoas que têm medo, algum desequilíbrio ou falta de propósitos.

Lidar com isso exige ouvir e entender. Precisamos saber, a essa altura do campeonato, quantos são os que ouvem para entender e quantos são os que ouvem só para rebater.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]