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Cultura do cancelamento mata mais um, o quadrinista Ed Piskor

“Sou impotente contra uma turba deste tamanho. Compartilhem o meu lado da história. Sayonara.” Essas foram as últimas palavras do quadrinista Ed Piskor, postadas no Facebook (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

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“Sou impotente contra uma turba deste tamanho. Compartilhem o meu lado da história. Sayonara.” Essas foram as últimas palavras do quadrinista Ed Piskor, postadas no Facebook junto com um longo texto explicando o lado dele na situação em que foi cancelado.

Durante o processo de cancelamento, ele disse várias vezes que não é uma inteligência artificial, é uma pessoa. A turba ensandecida não liga. Precisa repetir como papagaio acusações das quais não tem certeza e exigir que alguém seja aniquilado. Uma exposição da obra de Ed Piskor estava programada para começar hoje na 707 Penn Gallery em Pittsburgh, na Pensilvânia. Mas, antes que acontecesse, começou um daqueles furdunços de internet.

O cancelamento só termina quando as pessoas deixarem de ser permissivas com essas práticas dentro do grupo a que pertencem.

É quando gente aparentemente bem intencionada, mas com a alma podre se junta a uma turba para acusar alguém de alguma coisa. Ninguém ali tem certeza de nada. Quer dizer, de quase nada. Têm certeza da impunidade e do prazer de destruir alguém fingindo que é por uma causa maior. Nunca é. Se fosse, as pessoas estariam lutando pela causa em si. Não estão, estão só tentando destruir alguém.

O caso de Ed Piskor começou quando uma cartunista apareceu expondo mensagens que teria trocado com ele em 2017. Na época, ela seria menor de idade, 17 anos. Ele, mesmo sabendo, teria oferecido a ela a possibilidade de dormir na casa dele. As mensagens não podiam mais ser acessadas, havia apenas os prints. Ninguém chegou a verificar a veracidade dos tais prints. Também não era uma conversa completa. Estava claro que eles tinham tido muitas conversas e os prints eram pequenos pedaços.

Infelizmente, a decência está fora de moda. Na era digital, a moda é a podridão de alma.

Não importa. Uma multidão que finge defender direitos das mulheres começou a atacar o quadrinista. Exigiam que todos os contratos dele fossem terminados. Ele foi demonizado. Logo em seguida surge outra acusação e, dessa vez, nem precisou de print. Outra quadrinista disse que pediu a Ed Piskor o contato do agente dele e ele teria solicitado um favor sexual em troca. Ele nega, diz que jamais fez isso e que não deveria nem ter conversado com a artista.

O fato é que, até agora, ninguém conseguiu verificar a veracidade das histórias. Mas isso importa? Não. O quadrinista foi moído nas redes sociais durante dias. A exposição que ele esperava, reconhecimento vindo após o lançamento de um de seus melhores trabalhos, acabou sendo cancelada.

O noticiário sobre o cancelamento da exposição mal fala do cancelamento de Ed Piskor. Fala, em vez disso, da violência misógina sofrida online pelas mulheres que o denunciaram. Nem se questiona a veracidade das afirmações nem se realmente seria um crime caso as conversas tivessem mesmo ocorrido.

Não haverá corpos suficientes para tocar o coração dos violentos. O que precisa acabar é o silêncio dos bons, que creio serem a maioria.

O quadrinista não aguentou ver sua história, sua moral e sua profissão dilaceradas em público por uma turba sedenta de sangue. Acabou colocando fim à própria vida. Não é o primeiro e infelizmente pode não ser o último. No ano passado, falei aqui de outro caso, do professor Richard Bilkszto.

O processo de cancelamento é especialmente perverso porque nenhuma verdade é necessária. Uma multidão vai afirmar coisas sobre alguém sem nem saber se são verdade. Essa gente vai jurar o oposto, que tem certeza da veracidade. Afinal, viram um print, um vídeo, um recorte da pessoa falando, um influencer comentou, outro fez um vídeo com prints remontando a história. No fundo, as  pessoas não têm certeza e nem estão preocupadas com isso, querem só a arena romana, o prazer de ver alguém sofrer. Fingem ser por uma causa.

Algumas acusações são tão loucas que fica difícil de acreditar. Se você nunca foi alvo disso, vai pensar que então o alvo está a salvo. Não está. A verdade não importa, importa a fama. As turbas acusatórias não terão piedade de quem não se juntar a elas. Muita gente que não acredita na difamação corta contato com o alvo. Afinal, não quer ser contaminada por aquilo. Outros chegam inclusive a repetir o que sabem ser mentira. Agradar o grupo é fundamental.

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É por isso que pessoas chegam ao limite. Não importa a sua história, o que você fez, a verdade objetiva e a sua reação diante de acusações maldosas e estapafúrdias. A partir do momento em que uma turba escolhe alguém como alvo, ela só se contenta com a aniquilação.

Infelizmente isso vai continuar enquanto cada grupo social só coibir esse método quando usado pelo adversário. É muito claro para a direita quando a esquerda faz isso e vice-versa. Essas acusações são facilmente tratadas como “intrigas da oposição”, afinal é o adversário que acusa.

O cancelamento só termina quando as pessoas deixarem de ser permissivas com essas práticas dentro do grupo a que pertencem. Temos certeza absoluta dessa acusação que fazemos a fulano? Qual seria a solução para o problema? É correto atacar alguém em forma de turba, impossibilitando reação e resposta à altura?

Infelizmente, a decência está fora de moda. Na era digital, a moda é a podridão de alma. Em vez de consertar o próprio entorno, as pessoas justificam o chiqueiro moral pela podridão dos adversários. Não haverá corpos suficientes para tocar o coração dos violentos. O que precisa acabar é o silêncio dos bons, que creio serem a maioria.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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