O governo dos Estados Unidos recentemente abriu um processo judicial na Pensilvânia para enfrentar a estratégia digital da Rússia que visa criar divisionismo nas democracias. Esse processo busca evidenciar e combater as táticas empregadas pela máquina de propaganda russa, uma operação sofisticada que não apenas dissemina desinformação, mas também provoca a desestabilização social e política em nações democráticas.
Em 2020, escrevi na Gazeta do Povo sobre como Vladimir Putin aumentou em 40% o orçamento destinado à comunicação pública da Rússia, destacando como esse esforço estava voltado para expandir a influência russa globalmente por meio de táticas digitais.
A Rússia é a maior potência em desinformação, e as democracias devem estar atentas para garantir que os consensos necessários para manter a coesão social não sejam corroídos por uma divisão fomentada pelos ideólogos de Putin
No artigo, destaquei como a Rússia, desde a época da Guerra Fria, tem sido uma potência em manipulação midiática e desinformação. A máquina de propaganda de Putin não se limita à disseminação de notícias falsas ou boatos simplistas, trata-se de uma operação bem financiada e estratégica. Em 2020, o orçamento destinado a essa máquina alcançou 102,8 bilhões de rublos (aproximadamente R$ 6,6 bilhões), um valor comparável a todo o auxílio emergencial que o Brasil ofereceu durante a pandemia. A maior parte desse orçamento de desinformação é direcionada à mídia estatal, como a Russia Today (RT) e o Canal 1, ambas com alcance internacional e especializadas em mimetizar o estilo de veículos de notícias ocidentais, mas com um viés pró-Kremlin.
Uma técnica amplamente usada pela propaganda russa é o “firehosing” (enxurrada de informações, nome inspirado em firehose, mangueira de bombeiro), onde se misturam fatos verdadeiros e falsos com o objetivo de confundir, não de convencer diretamente. A ideia é inundar o espaço público com acusações, verdades parciais e mentiras, criando uma névoa de dúvidas que corrói a confiança nas instituições democráticas e nos veículos de comunicação. É essa confusão que gera desconfiança entre cidadãos e faz com que as pessoas, já sobrecarregadas de informações, parem de buscar a verdade. O objetivo da Rússia, nesse contexto, não é doutrinar, mas sim dividir as sociedades democráticas.
O processo judicial aberto nos EUA é uma resposta direta a essa estratégia russa. O Departamento de Justiça dos EUA detalhou em seu processo contra a operação chamada de "Doppelganger". Em alemão, Doppelgänger significa literalmente "duplo" ou "sósia", referindo-se a uma pessoa que é idêntica ou muito semelhante a outra, muitas vezes associada a conceitos de cópia misteriosa ou alter ego.
A operação envolve 32 domínios cibernéticos utilizados pelo governo russo e por atores patrocinados pela Rússia. Por meio dessas plataformas, a Rússia promove campanhas de influência maligna para semear divisão e influenciar eleições em democracias ao redor do mundo, sem que o envolvimento russo seja explicitamente identificado.
Um dos líderes dessas operações é Sergei Kiriyenko, vice-chefe de gabinete do governo russo, que, junto com empresas como a Social Design Agency (SDA) e Structura National Technology, tem como missão a criação de sites falsos que imitam veículos de mídia legítimos como The Washington Post e Fox News. Esses sites falsificados são desenhados para parecerem idênticos aos originais, com o uso de logotipos, layout e até mesmo links redirecionando os usuários para os verdadeiros sites de notícias, criando uma confusão deliberada. O conteúdo, no entanto, é manipulado para promover narrativas pró-Rússia, como a redução do apoio internacional à Ucrânia e o enfraquecimento das relações com aliados ocidentais.
As investigações revelaram que a Rússia também utiliza perfis falsos em redes sociais para espalhar esses links e aumentar a visibilidade das notícias manipuladas pelo governo, além de pagar por anúncios em redes sociais para impulsionar o tráfego para esses sites.
A operação Doppelganger faz parte de uma estratégia mais ampla que visa não apenas influenciar eleitores americanos, mas também públicos em outros países. O FBI constatou que os sites envolvidos nesse esquema têm como alvo audiências específicas dentro dos EUA e em outras nações democráticas. Ao divulgar artigos como “A Casa Branca calculou errado: o conflito com a Ucrânia fortalece a Rússia”, o objetivo é gerar ceticismo em relação ao apoio americano à Ucrânia e promover uma narrativa de que a continuação desse apoio seria um erro estratégico.
Desde a Guerra Fria, a Rússia tem sido líder em desinformação e guerra de informação digital, aprimorando essas táticas em um ambiente global cada vez mais conectado. Operações como a Doppelganger mostram como a manipulação russa evoluiu, especialmente no ambiente digital, para influenciar sociedades que valorizam o debate aberto e a liberdade de expressão.
Em democracias, é comum que as pessoas julguem a legitimidade de uma informação com base em seu conteúdo, enquanto regimes autoritários, como o da Rússia, se focam nos métodos de disseminação. A verdadeira ameaça das táticas russas está na sua habilidade de criar divisões internas e fomentar desconfiança entre cidadãos de uma mesma nação.
Em vez de promover uma ideologia específica, essas operações buscam aumentar o caos e a instabilidade social, minando a confiança mútua necessária para o funcionamento saudável de uma democracia. O desafio para as democracias, como os Estados Unidos e o Brasil, é identificar e combater essa manipulação insidiosa antes que o dano seja irreversível.
No Brasil, uma questão importante é se essas operações já estão acontecendo ou se chegarão ao país. O Brasil tem se aproximado de potências autoritárias como a Rússia, China e Irã, e entender como esses países manipulam o espaço digital para minar democracias se torna uma prioridade urgente.
O ambiente digital brasileiro, com sua intensa polarização política, pode ser terreno fértil para estratégias como o divisionismo digital promovido pela Rússia. O questionamento que devemos fazer é: estaremos preparados para enfrentar esse desafio? A Rússia é a maior potência em desinformação, e as democracias devem estar atentas para garantir que os consensos necessários para manter a coesão social não sejam corroídos por uma divisão fomentada pelos ideólogos de Putin.
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