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É possível manter as liberdades democráticas num mundo mediado por algoritmos divisionistas?

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Imagem ilustrativa. (Foto: Bigstock)

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Vivemos uma era que colide com todo o desenvolvimento das sociedades humanas, aquela que premia o divisionismo no lugar da colaboração. Não se trata de ideologia nem de maldade, mas daquilo que tem se estabelecido como desenvolvimento tecnológico e econômico.

A internet nos possibilita oportunidades que jamais imaginamos, por fazer acontecer conexões humanas antes impossíveis pela distância, pelo custo financeiro ou pelo idioma. Nós, seres humanos, não prosperamos nem triunfamos sobre outras espécies pela superioridade física. A evolução da humanidade é toda fundamentada sobre o nosso espírito gregário e capacidade de cooperação entre os indivíduos.

À semelhança de outras sociedades primatas, como os chimpanzés e principalmente os bonobos, estabelecemos códigos de convivência em que a colaboração e solução de conflitos superam o divisionismo. Isso é o que pautou milênios de desenvolvimento e ainda pauta. Nossa evolução é calcada na colaboração. Obviamente sempre tivemos conflitos, a exemplo do que é corrente nas sociedades de chimpanzés. Aprendi muito sobre isso no livro Eu, primata, de Franz de Waal, que me foi indicado pela amiga doutora em genética Luciana Feliciano.

Vivemos em uma sociedade que, diferentemente de todas as sociedades humanas formadas anteriormente, se globalizou em uma lógica mediada por quem cria a oposição e a diferença como forma de lucro.

Toda nossa mentalidade é voltada para a colaboração, comportamento que acaba sendo aquele premiado socialmente até por questão de sobrevivência. Sempre tivemos disputas e guerras, mas elas são pontuais. O poder estabelecido, ainda que tenha sido alcançado por meio de disputas, se solidifica por meio da capacidade de amalgamar colaboração.

Partimos, pela primeira vez na história, para uma experiência social em que misturamos o comportamento de guerra com o comportamento de solidificação do tecido social. As duas coisas não se diferem, o que causa uma confusão enorme na convivência diária.

Somos hoje dependentes de nossos celulares e aplicativos. E, cá entre nós, eles são realmente muito úteis e nos trazem inúmeras possibilidades de desenvolvimento social e humano. Ocorre que tudo isso passa a ser mediado por aplicativos e plataformas criados por empresas. A forma delas de fazer lucro é justamente o oposto do que nos trouxe até aqui como sociedade, o divisionismo.

Não somos recompensados pela vida na medida exata do avanço de nossas habilidades, progredimos muito mais na medida em que aceitamos o imponderável.

As redes nos trouxeram uma simplificação intelectual quase irresistível. O mundo mediado por algoritmos nos traz respostas elegantes para o avanço de nossas habilidades individuais. Se você passa a dominar a habilidade de fazer um movimento específico em games como Zelda ou Fifa, a sua recompensa será na exata medida desse desenvolvimento. Quando você passa a dominar a habilidade para obter engajamento e likes em redes sociais, os algoritmos respondem com a elegância de premiar o seu avanço de domínio da técnica.

A vida real não é assim. Não somos recompensados pela vida na medida exata do avanço de nossas habilidades, progredimos muito mais na medida em que aceitamos o imponderável, a incerteza e os imprevistos. Você dá à sociedade o avanço da sua habilidade e seu resultado será uma mistura disso com o imprevisível.

Vivemos uma dualidade. Por um lado somos condicionados pelas plataformas a aceitar de forma acrítica a simplificação intelectual da resposta elegante do algoritmo, que nos recompensa à medida dos nossos avanços pessoais. Por outro lado, vivemos a realidade em que o imprevisto é presença certa e que a colaboração humana, com toda sua imperfeição, é o que nos leva adiante como sociedade. Existe aí um paradoxo. As plataformas, que mediam todas essas relações ininterruptas de hipercomunicação, vivem do divisionismo. Novamente, não é uma consideração moral. É um elemento financeiro, parte importante daquilo que consideramos fundamental para o nosso progresso individual e coletivo.

Se você não está pagando pelas redes sociais, você é o produto. Qual é o business dessas plataformas que hoje são mediadoras da maioria das interações humanas? Formar grupos hipersegmentados para a venda de marketing direcionado ao público mais exato possível. Isso significa que toda ação divisionista é premiada socialmente, de forma diferente da mentalidade gregária que pautou a evolução humana.

Na economia da atenção, lucram mais e ganham mais poder aqueles que conseguem se estabelecer na lógica do “nós contra eles”.

É preciso deixar claro que algoritmo não é um ente autônomo, é a expressão da vontade humana que só funciona pela permissividade humana. Tecnicamente, o que é um algoritmo? Algoritmo é uma sequência finita de ações para resolver determinado problema ou atingir determinado objetivo, escrita em forma de sentença matemática. Ou seja, pessoas que fazem parte do comando das Big Techs donas das redes sociais tomam uma decisão de negócios. Essas decisões poderiam ter ponderações pela preservação de direitos ou contra o esgarçamento do tecido social. Não têm.

A opção é por continuar ganhando dinheiro com a economia da atenção e com a fomentação do divisionismo e da polarização tóxica, formando grupos viciados no “nós x eles” e na embriaguez com a ideia da própria virtude moral. Essas decisões, tomadas por seres humanos, são colocadas em prática pelas máquinas. O algoritmo é a forma como as máquinas são comunicadas sobre as ações que elas devem fazer.

Na economia da atenção, lucram mais e ganham mais poder aqueles que conseguem se estabelecer na lógica do “nós contra eles”. São esses os que conseguem criar grupos no maior grau possível de divisionismo e, portanto, mais interessantes para o marketing hipersegmentado. É para esses grupos, criados pelo divisionismo, que são direcionadas as publicidades compradas a peso de ouro.

Todo o mecanismo da plataforma é voltado para fomentar o divisionismo. Isso não seria um problema tão grande caso tivéssemos essa consciência. O problema para a nossa liberdade é o clima de dissonância cognitiva. Imaginamos estar em uma sociedade como a que pautou o desenvolvimento humano, que premia a colaboração. Estamos, no entanto, num ambiente que premia socialmente o divisionismo.

A grande questão é como manter nossas liberdades democráticas e individuais em um ambiente que funciona de uma forma clara no divisionismo, mas a imensa maioria das pessoas imagina ser uma repetição da nossa história, a premiação da colaboração. Divisionismo e diálogo são há milênios opostos, inclusive no surgimento dessas palavras. É diante dessa dualidade que nossas sociedades vivem, tentando equilibrar os pratos das liberdades democráticas e individuais.

A grande questão é como manter nossas liberdades democráticas e individuais em um ambiente que funciona de uma forma clara no divisionismo.

Quando pensamos hoje no que seria a manifestação do mal, a resposta é clara: o outro. O nosso grupo é bom, se faz o mal é tentando o bem, precisamos agir assim porque nossos adversários são tão maus que nos obrigam a fazer o mal para chegar ao bem. Raciocinamos dessa maneira mesmo quando somos um só povo, um só país, uma mesma igreja, uma comunidade profissional, uma vizinhança. O outro é quem pensa diferente e, por isso, não pode fazer parte da nossa unidade. Sedimentamos o divisionismo.

Pior ainda, passamos a fazer uma imagem errada de nós mesmos, como se fossemos completamente bons. Precisamos ter sempre em mente que não somos, temos todos na alma as trevas e a luz. Muitas vezes não fazemos o bem que queremos e fazemos o mal que não queremos. Essa consciência incômoda é fundamental para dar consequência às nossas ações. Talvez não seja má ideia voltar às nossas origens, ao que nos trouxe a sociedades que evoluem para o bem comum e as liberdades, mesmo diante dos nossos ímpetos guerreiros e vingativos.

A divisão em si não é o problema, a forma como lidamos com ela é que se converte em um.

É curioso que, em suas origens ancestrais, as palavras diálogo e diabo sejam etimologicamente similares e opostas. Simplificando de forma castradora, o diálogo é a diferença que compõe e o diabo é aquela que sedimenta o dissenso. As diferenças são comuns aos dois vocábulos. O desfecho é diametralmente diferente.

Grosso modo, podemos dividir as duas palavras em dois: dia-logo e dia-bo. Não é uma bobagem, é a origem de duas ideias muito poderosas na história da humanidade. A divisão em si não é o problema, a forma como lidamos com ela é que se converte em um.

A ideia de 'διά ‎(diá) é a da oposição, da diferença, de um lado cá e outro lá, de cá e lá, de dualidade ou multiplicidade, de parcialidade, de um contra o outro. Essa ideia em si não é maléfica, pode ter dois desfechos diferentes.

O primeiro é o 'λόγος (‎lógos), a palavra. O conceito é múltiplo e permeia as ideias de discussão, proposição, sentença, exemplo, pretexto, argumento, referência, conversa. A oposição somada a essas ideias é o diálogo, o entendimento, a composição gregária que fez a humanidade avançar.

A segunda ideia é de 'βάλλω ‎(bállō), atirar. É quando a oposição tem seu desfecho em destruição do diferente ou do oposto. Vem daí o conceito de 'διάβολος' em grego, diabolus no latim. É quando a diferença se converte em motivo e força de destruição do diferente.

Vivemos em uma sociedade que, diferentemente de todas as sociedades humanas formadas anteriormente, se globalizou em uma lógica mediada por quem cria a oposição e a diferença como forma de lucro. Resta saber se nos comportaremos na pauta do diálogo ou do diabo. A maravilha da tecnologia é que ela nos dá exatamente aquilo que pedimos. A desgraça da tecnologia também é que ela nos dá exatamente o que pedimos. Precisamos aprender a pedir.

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