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EUA proíbem app de divulgar informações de saúde mental de usuários com o Facebook

Imagem ilustrativa. (Foto: Unsplash)

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Quando falamos em regulação de plataformas digitais no Brasil, ainda estamos falando de controle de conteúdo, debates intermináveis sobre liberdade de expressão e censura. Não é isso, no entanto, que países desenvolvidos focam na tarefa de regulação.

Em 2021, fiz aqui na Gazeta do Povo um artigo sobre Direitos Neurais. Um dos exemplos citados foi o da saúde mental. Plataformas de redes sociais têm hoje uma capacidade maior que a dos médicos e das famílias de detectar mudanças comportamentais. Um exemplo é o do transtorno de personalidade bipolar. Redes sociais conseguem detectar com mais precisão que médicos e familiares quando alguém passa da fase maníaca para a depressiva e vice-versa.

Você já viu algum serviço que ofereça a quem tem transtorno bipolar a informação de mudança da fase maníaca para a depressiva?

Esse fato pode ter diversas utilidades mercadológicas. A plataforma pode, por exemplo, oferecer serviços em que avise a mudança de fase à pessoa que tem o transtorno, seus médicos e seus familiares. Também pode usar essa informação para fazer anúncios direcionados. É uma escolha. Quem passa da fase depressiva à maníaca tende a fazer mais compras mirabolantes e inúteis, como carros, viagens, objetos de luxo. E fará principalmente se vir postagens de pessoas de seus círculos fazendo compras semelhantes.

Criar um serviço de aviso vai esbarrar em inúmeros tipos de regulações. Imagine que o serviço falhe e que alguém resolva processar a plataforma porque teve prejuízos reais com isso. No caso de não haver problemas, seria um serviço médico, de publicidade, de consultoria? São questões empresariais a resolver.

Do outro lado, se os dados forem usados para publicidade segmentada, continua tudo como está. Ninguém sabe direito como funciona e os esforços regulatórios ainda estão começando. Você já viu algum serviço que ofereça a quem tem transtorno bipolar a informação de mudança da fase maníaca para a depressiva? Pois é. Já sabemos qual foi a decisão tomada pelas plataformas. Difícil é saber como lidar com isso.

Nos Estados Unidos, os esforços regulatórios são concentrados na liberdade econômica e na propriedade dos dados, que é dos usuários, não das plataformas.

Nossa tendência no Brasil tem sido atacar o sintoma, não a doença. Vemos algo assim e tentamos logo imaginar como proibir que as plataformas façam anúncios segmentados para pessoas com transtornos mentais. Chegaríamos então aos conteúdos que seriam proibidos. É como enxugar gelo. Ou, como disse uma fonte, enxugar um prédio de gelo usando um guardanapo de papel. Nos Estados Unidos, os esforços regulatórios são concentrados na liberdade econômica e na propriedade dos dados, que é dos usuários, não das plataformas.

Daí chegamos ao caso desta semana, envolvendo um aplicativo chamado BetterHelp. Pessoas com problemas de saúde mental baixam esse aplicativo em busca de ajuda. A Federal Trade Commission descobriu que esses usuários eram traídos. A pessoa buscava o aplicativo e tinha a garantia de que todos seus dados seriam mantidos de forma confidencial. Então fazia uma busca escancarando todos os seus problemas e sintomas. Recebia conselhos de especialistas para melhorar a situação e orientações de como buscar tratamento.

Dá para ganhar muito mais dinheiro traindo os usuários e vendendo a intimidade deles para ser utilizada como base de uma plataforma de anúncios.

Ocorre que esses dados não eram mantidos de forma confidencial como prometido. Eles eram empacotados e vendidos para que o Facebook e outras plataformas os utilizassem para marketing segmentado. O usuário não consegue perceber que isso está acontecendo. É justamente aí que está a perversidade dessa prática de mercado. Ele baixa um app, pede aconselhamento para problemas de saúde mental e tem todas as suas atividades monitoradas para que esse aconselhamento seja o mais preciso possível.

Ele efetivamente recebe o aconselhamento. Mas, além disso, os dados mais íntimos do comportamento dele são vendidos para outras plataformas. Eles serão utilizados para vender anúncios de produtos, serviços e ideologias que tenham uma conversão mais certeira, ou seja, que o usuário aceite com mais facilidade.

A BetterHelp não era um único app, a própria empresa já segmentava seu público alvo, aumentando o valor dos dados que poderiam ser vendidos. A empresa tinha os apps Faithful Counseling, para cristãos; Teen Counseling, focado em adolescentes e que requeria autorização dos pais; e Pride Counseling, voltado à comunidade LGBT.

Para utilizar os serviços, as pessoas preenchiam um formulário com informações íntimas sobre saúde mental. Tinham de dizer, por exemplo, se já tiveram depressão, pensamentos suicidas ou se estavam tomando alguma medicação e que medicação era essa.

Nós gostamos de culpar vítimas e pensar que não somos vulneráveis a esse tipo de traição. Se você chegou até aqui, provavelmente imagina que seja muito ingênuo compartilhar tudo isso para receber um aconselhamento em saúde mental de forma gratuita.

Não era gratuito. Pior, era caro. Os usuários tinham de pagar entre US$ 60 e US$ 90 para obter o aconselhamento. Natural que pensassem se tratar de um negócio legítimo que resguardaria seus dados. Já estavam pagando pela consulta. Parece um modelo de negócio viável uma plataforma que promove o encontro entre especialistas e pacientes.

Unir médicos e pacientes é uma demanda da sociedade e o serviço estava sendo pago.

Além disso, ao longo do processo de anamnese, os usuários recebiam inúmeras certificações de que seus dados seriam tratados de maneira confidencial e unicamente para propósitos de saúde. Se assegurava o sigilo médico-paciente diversas vezes. Era mentira.

Efetivamente, é um modelo de negócio viável mesmo sem a fraude. Unir médicos e pacientes é uma demanda da sociedade e o serviço estava sendo pago. Ocorre que dá para ganhar muito mais dinheiro traindo os usuários e vendendo a intimidade deles para ser utilizada como base de uma plataforma de anúncios. Isso foi feito, infelizmente.

“Quando uma pessoa que luta com problemas de saúde mental procura ajuda, ela o faz em um momento de vulnerabilidade e com a expectativa de que os serviços de aconselhamento profissional protejam sua privacidade. Em vez disso, a BetterHelp traiu as informações de saúde mais pessoais dos consumidores para obter lucro. Que esta ordem proposta seja um forte lembrete de que a FTC priorizará a defesa dos dados confidenciais dos americanos da exploração ilegal.", declarou publicamente Samuel Levine, diretor do Bureau of Consumer Protection da FTC.

A liberdade do cidadão é violada de diversas formas. O dito tradicional é que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

A BetterHelp foi sentenciada a uma multa imediata de US$ 7,8 milhões. Além disso, foi terminantemente proibida de compartilhar dados de seus usuários sem o consentimento expresso deles sobre qual dado seria compartilhado e com quem. Nos Estados Unidos não há como não pagar essas multas, parcelar ou empurrar com a barriga. Por isso as sanções econômicas são tão efetivas na regulação do mundo digital. Elas são efetivas em toda a cadeia econômica e social, não há como fugir delas.

Aqui no Brasil temos uma realidade diferente. Empresas que fizeram acordos de leniência com a Lava Jato, por exemplo, estão diante da oportunidade de honrar esses compromissos financeiros com serviços. Fariam novas obras, exatamente a gênese da corrupção, para compensar os acordos de leniência por admitir corrupção em obras.

Como faríamos esse sistema funcionar com empresas do mundo digital? É muito mais difícil apurar informações, elas têm aqui mais possibilidades de maquiar suas atividades e, além disso, o impacto da punição econômica não é o mesmo. Há diversas alternativas para evitar que a perda financeira seja imediata e até mesmo que aconteça. Basta apostar no jogo político e esperar que ocorra alguma mudança.

De qualquer forma, temos agora esse exemplo internacional. A liberdade do cidadão é violada de diversas formas. O dito tradicional é que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Estamos diante de um caso concreto que pode estar sendo replicado por outras empresas ao redor do mundo. Os Estados Unidos utilizaram o rigor e a firmeza institucional dos órgãos de regulação econômica para dar uma solução ao caso.

Teremos de recorrer ao mesmo modelo. Resta saber quais são os princípios e instituições sólidos o suficiente para ser nosso anteparo em tempos de incertezas e inovações em velocidade máxima.

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