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Na época da pandemia, havia grupos de estudantes universitários canadenses e norte-americanos que se dedicavam a delatar colegas que violavam as regras contra Covid-19. Para quem eles delatavam? Para o público das redes sociais. Eles publicavam o nome dos colegas e, muitas vezes, outros dados como endereço, trabalho, perfis dos chefes, perfis dos familiares. De forma velada, incentivavam o assédio e ataque a esses colegas. Participavam do movimento.
Você já deve ter visto esse mesmo movimento feito com diversas justificativas morais. No final das contas, o grupo não sabe direito o que o alvo vez, se é que fez algo. Simplesmente passa a acreditar que aquela pessoa cometeu uma infração grave e a única forma de corrigir isso é o justiçamento.
O que alguém faz para ter prazer com sofrimento dos outros parece incompatível com o que alguém faz porque acredita ser mais virtuoso que os outros.
Dali em diante pouco importa se o comportamento da pessoa foi aquele mesmo ou não. Se não foi, uma justificativa é arrumada. Teria feito algo parecido ou não teria feito nada e isso significa apoiar quem fez. A realidade não importa. O grupo dá uma forma de justificar perseguições, assédio, violência, avançar no trabalho e família da pessoa.
Quando interpelados, os integrantes do grupo têm justificativas prontas. São contra justiçamento, mas o mal ali é tão grande que não tem outro jeito. Não participaram do ataque porque usaram palavras educadas quando se juntaram ao grupo de ataque. Não incentivaram ataque porque disseram que eram contra enquanto criavam a situação perfeita para o grupo atacar.
A questão aqui é: o que leva as pessoas a agirem assim? Muito provavelmente falamos de uma minoria, mas barulhenta o suficiente para dominar o debate e também para destruir vidas. Isso acontece diariamente e envolve gente comum. Recentemente foi publicado um estudo sobre este tema: O Narcisismo e Sadismo Comunitários como Preditores do Vigilantismo Cotidiano. Ele foi conduzido por Fan Xuan Chen (departamento de psicologia da Universidade de Illinois, EUA), Ekin Ok (Smith School de Negócios, Universidade de Queens, Canadá) e Karl Aquino (Sauder School de Negócios, Universidade da Columbia Britânica, Canadá). Ele se transformou em um artigo do professor de psicologia Steve-Stewart Williams, autor dos livros The Ape That Understood the Universe e Darwin, God and the Meaning of Life.
Numa camada superficial, tendemos a analisar a situação de forma ingênua. Alguém fez algo errado e as pessoas se revoltam. Não há dúvidas de que, no meio dos ataques, existe gente assim. Passam do ponto, não têm controle emocional, mas não são movidas por maldade. Ocorre que o sentimento predominante nos grupos é bem menos nobre. O primeiro deles é o “narcisismo comunitário”. O termo não se refere à patologia psiquiátrica narcisismo, que virou lugar comum nas redes sociais. Falamos aqui de algo análogo. É a crença grandiosa sobre a própria prestatividade, proatividade ou benevolência.
Há outro motivador, o sadismo, tendência de ter prazer ao fazer outras pessoas sofrerem. Pense isoladamente em grupos que têm essa motivação. Como eles agem? Teoricamente, podemos pensar em comportamentos absolutamente distintos. O que alguém faz para ter prazer com sofrimento dos outros parece incompatível com o que alguém faz porque acredita ser mais virtuoso que os outros.
A novidade do estudo é mostrar que ambos os comportamentos se misturam e são os principais motivadores dos justiçamentos diários, famosos principalmente na lacração e cancelamentos inflamados nas redes sociais. “Para os narcisistas comunitários, o vigilantismo pode ser uma oportunidade para demonstrar superioridade moral. Para os sadistas, pode ser um contexto socialmente aceitável para infligir danos a outros. E para os sadistas narcisistas comunitários, pode ser um pouco de ambos”, diz Steve Stewart-Williams.
Existe ainda outro componente importante, o poder que vem de se colocar como vítima. "Uma diferença individual que pode amplificar o efeito do sadismo é a tendência para a vitimização interpessoal, definida como a crença de que alguém foi vítima em relacionamentos passados. Chen e seus colegas (2022) demonstraram que pessoas que tendem a se ver como vítimas também têm mais probabilidade de se tornarem vigilantes. Uma previsão baseada em suas descobertas é que a crença em vitimização passada poderia fornecer aos sadistas uma justificativa adicional para satisfazer seu desejo de crueldade ao se tornarem vigilantes.", diz o estudo.
Nada em psicologia é simples. O resultado do estudo não significa que todas as pessoas envolvidas em atividades de justiçamento diário ou cancelamentos sejam descritas por esses perfis. Significa, no entanto, que são sentimentos motivadores para a ação em grupo. O interessante do estudo é que coloca por terra as razões alegadas para esse tipo de ação. O grupo geralmente sinaliza virtude, diz que faz para melhorar o mundo ou interromper ações maléficas.
Voltando ao início, a história dos estudantes que perseguiam os que supostamente violavam regras na época da pandemia. De que forma esse tipo de ação combateu a Covid-19 ou reduziu o número de vítimas?
O discurso é distante da prática. As ações inevitavelmente levam a consequências opostas ao que o grupo diz defender. Os frutos dessas ações não são um mundo mais justo ou solução dos problemas que eles dizem enfrentar. Conhecemos a árvore pelos frutos.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos