Gisèle Pélicot chegando no sétimo dia do julgamento contra seu ex-marido Dominique Pélicot, acusado de drogá-la e estuprá-la durante anos junto com dezenas de homens| Foto: EFE/ Edgar Sapiña Machado
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Para muitos, sites como Xvideos e Pornhub podem parecer versões adultas de serviços de streaming, uma espécie de “Netflix de vídeos adultos”. Essa percepção simplista, no entanto, mascara uma realidade profundamente perturbadora. Diferentemente das plataformas de streaming que operam com conteúdos licenciados e rigorosamente controlados, sites pornográficos funcionam mais como redes sociais abertas, onde qualquer pessoa pode criar uma conta, subir vídeos e até monetizar o conteúdo. Essa dinâmica cria um ambiente de descontrole, onde vídeos de abuso sexual, violação de privacidade e conteúdos claramente não consensuais prosperam com assustadora facilidade.

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Um dos casos mais emblemáticos que expôs a gravidade desse problema foi o de Gisèle Pelicot, uma mulher francesa de 72 anos que se viu vítima de um crime bárbaro perpetuado por seu próprio marido, Dominique Pelicot. Dominique é acusado de drogá-la repetidamente e convidar mais de 50 homens para estuprá-la em sua casa, enquanto ela estava inconsciente. O caso ganhou repercussão internacional não apenas pela monstruosidade dos atos cometidos, mas também pela coragem de Gisèle em renunciar ao seu direito de anonimato e expor publicamente a sua história.

A luta contra os crimes cometidos por sites de vídeos pornográficos não é apenas uma questão de justiça para as vítimas; é uma questão de responsabilidade coletiva e de defesa da dignidade humana

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Dominique filmava os estupros e compartilhava os vídeos em plataformas online, transformando o abuso em um produto consumível para um público que, em muitos casos, estava ciente da natureza não consensual do conteúdo.

Gisèle, em seu depoimento, expressou que sua motivação para tornar o caso público era alertar outras mulheres sobre os perigos do abuso facilitado por drogas e a importância de denunciar, mesmo quando o sistema parece falhar com as vítimas. Essa exposição pública foi um ato de resistência, mas também uma dolorosa lembrança de como os abusos podem ser transformados em entretenimento sem a menor consideração pela dignidade humana​.

No Brasil, a situação é igualmente desoladora, com uma série de casos que ilustram a impunidade e a normalização de abusos em plataformas pornográficas. Em diversas ocasiões, relatei como vídeos de mulheres sendo abusadas em transportes públicos se transformaram em um nicho popular dentro desses sites. Esses vídeos, muitas vezes gravados sem o conhecimento ou consentimento das vítimas, capturam atos de abuso em espaços lotados, como ônibus e metrôs, onde os agressores agem de maneira dissimulada, tornando difícil para os outros passageiros perceberem o que está acontecendo.

O que deveria ser um ambiente seguro se torna um palco para abusos, que são posteriormente compartilhados online, alcançando milhões de visualizações. Esses vídeos são facilmente reconhecíveis como atos de abuso real, sem qualquer tentativa de disfarçar a violência envolvida.

Os comentários nos vídeos revelam uma cultura de desumanização e desprezo pelas vítimas, que são vistas como meros objetos para consumo. Em um caso particularmente perturbador, uma adolescente brasileira descobriu que um vídeo do seu abuso sexual estava sendo disseminado em diversos sites pornográficos. Ela foi filmada enquanto estava em um ônibus a caminho da escola. O vídeo, que mostrava claramente o abuso, rapidamente ganhou milhares de visualizações. A jovem, ao buscar ajuda, encontrou um sistema pouco disposto a responsabilizar os culpados, com as plataformas online removendo o conteúdo apenas após denúncias e sem qualquer medida preventiva para evitar que esses vídeos fossem postados inicialmente.

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A impunidade é um tema recorrente nesses casos. Mesmo quando as plataformas decidem agir, a resposta é lenta e ineficaz. Quando perfis são banidos, os agressores rapidamente criam novos com identidades falsas, reiniciando o ciclo de abuso. A facilidade com que é possível repostar vídeos, criar novas contas e mascarar a identidade através de ferramentas como VPNs, torna quase impossível para as vítimas obterem justiça ou mesmo garantir que seus abusos não sejam repetidamente expostos.

Em muitos casos, as vítimas são obrigadas a viver com o medo constante de que seus abusos possam reaparecer online a qualquer momento, causando um trauma contínuo e uma violação persistente de sua privacidade. Para piorar, essas plataformas não têm representante legal no Brasil.

No caso dos abusos em transportes públicos no Brasil, as falhas do sistema são ainda mais evidentes. Além do sofrimento de ter seu abuso exposto online, as vítimas enfrentam uma série de barreiras para denunciar os crimes. Cada vídeo postado exige uma denúncia separada, cada perfil falso demanda uma nova investigação, e mesmo quando os agressores são identificados, raramente enfrentam punições severas.

Um exemplo claro da ineficácia do sistema é o caso de Diego Ferreira de Novais, preso 16 vezes por abusos sexuais em transporte público e sempre solto em seguida. Novais não era apenas um abusador em série, ele era uma representação viva das falhas do sistema em tratar esses crimes com a seriedade que merecem. Com múltiplas prisões e acusações de estupro, ele continuava a ser libertado, demonstrando como o sistema judicial brasileiro frequentemente falha em proteger as vítimas e punir adequadamente os culpados.

A resposta das plataformas até agora tem sido insuficiente. O Pornhub, por exemplo, tomou medidas como deletar vídeos com títulos relacionados a conteúdos não consensuais e enviar alertas aos usuários sobre a ilegalidade de buscar certos termos. Isso foi após o caso Gisèle Pelicot.

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No entanto, essas ações são meramente superficiais diante de um problema muito mais profundo e estrutural. Enquanto as plataformas continuarem a operar sem uma regulação robusta e uma fiscalização efetiva, os abusadores continuarão a usar esses sites como canais para propagar seus crimes com um sentimento de total impunidade. A remoção de um vídeo após uma denúncia não restaura a dignidade ou a privacidade perdida da vítima, e a facilidade com que esses conteúdos podem ser republicados destaca a necessidade urgente de um sistema de prevenção mais eficaz.

Os sites de vídeos pornográficos devem ser regulados com o mesmo rigor aplicado a outras grandes plataformas de redes sociais.

A luta contra os crimes cometidos por sites de vídeos pornográficos não é apenas uma questão de justiça para as vítimas; é uma questão de responsabilidade coletiva e de defesa da dignidade humana. Cada vídeo de abuso que circula na internet é um lembrete doloroso de que falhamos em proteger aqueles que mais precisam. Está na hora de mudar essa realidade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]