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Mais uma história que no início foi tratada como algo entre Fake News e teoria da conspiração é comprovadamente verídico. A chinesa ByteDance, que é a dona do TikTok, admitiu numa declaração pública que espionou jornalistas dos Estados Unidos. É um incêndio na discussão sobre Big Techs e privacidade de dados, sobretudo no ponto em que essas empresas se entrelaçam com interesses da geopolítica internacional.
O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou diversas vezes que as Big Techs chinesas estavam espionando o mundo ocidental por interesses do Partido Comunista Chinês. Naquela altura, essa história foi colocada no balaio das loucuras trumpistas de internet. Não sabemos até agora se Trump realmente tinha informações sobre isso ou se tinha apenas desconfiança e usou essa história para fortalecer suas posições políticas. Mas agora temos a comprovação de que realmente é verdade.
No Brasil, as Big Techs ainda são tratadas como aliadas das autoridades. No entanto, nenhuma delas tem sede no país.
Os fatos enfureceram o mundo político dos Estados Unidos e da Europa, mas não causaram aqui no Brasil o mesmo impacto. Aqui, a discussão sobre redes sociais ainda é muito incipiente e centrada em conteúdo. Em outros países, ela já é centrada em dados, algoritmos, neurohacking e manipulação.
No Brasil, as Big Techs ainda são tratadas como aliadas das autoridades. No entanto, nenhuma delas tem sede no país. A tendência é de que elas sejam aliadas dos governos onde estabelecem a sede de suas operações. Outra diferença de abordagem, que foi fundamental para que o TikTok admitisse publicamente a espionagem, é não desqualificar completamente como teorias conspiratórias ideias que podem ser fatos. Nem a rivalidade política faz com que a desqualificação seja automática, ainda há um contingente significativo de autoridades políticas e figuras da imprensa que é comprometido com fatos.
A suspeita ter sido levantada por Donald Trump não fez com que ela fosse imediatamente colocada de lado, mesmo que ele esteja comprovadamente enredado em diversos escândalos de manipulação das redes sociais. As investigações continuaram com olho nos fatos, tanto dentro do governo dos Estados Unidos quanto na imprensa. E foi a imprensa norte-americana quem detonou a bomba.
O escândalo internacional não se restringe aos fatos que foram revelados. Essa operação realmente aconteceu e está comprovada.
Em dezembro do ano passado, o departamento de Homeland Security fez pela primeira vez uma declaração pública dizendo que Big Techs chinesas e russas estavam sendo instrumentalizadas por seus governos e espionando entidades governamentais dos Estados Unidos. O simples fato de ter os aplicativos dessas empresas instalados em computadores e celulares pertencentes ao governo já possibilitava a espionagem. Mas, no mês passado, o TikTok diz que se tratava de Fake News para denegrir a imagem da empresa.
Mesmo assim, começou uma avalanche de estados norte-americanos que começaram a proibir a instalação desses aplicativos em equipamentos governamentais. Também se aconselhou funcionários públicos que não utilizassem essas tecnologias.
Até o meio de dezembro, 19 dos 50 estados dos EUA já haviam proibido a instalação e utilização do TikTok e de outros serviços chineses. Entre eles, estão o gigante de compras Ali Baba, o sistema de pagamentos Ali Pay, o aplicativo de mensagens We Chat e todo tipo de software e hardware produzido pelas empresas Huawei e ZTE. Também ficou proibida a utilização de produtos da russa Kaspersky, que se dedica a segurança digital e é grande anunciante das redes sociais aqui no Brasil.
No final do ano passado, também começou a ser gestada uma legislação nacional sobre o tema. Ela acabou não sendo votada por pressão das Big Techs norte-americanas, que temiam também ser sancionadas pelas políticas de proteção de dados, o que teria efeito sobre seus lucros. A lei foi inicialmente proposta por conservadores, mas ganhou muito apoio entre liberais e até mesmo na esquerda norte-americana. Acabou esbarrando nas relações pouco republicanas entre políticos e Big Techs. Muitos deles têm familiares em cargos importantes nessas empresas.
Quando o ano começou, muita gente imaginou que o governo Biden não compraria essa briga mesmo diante dos alertas do departamento de Homeland Security. É uma pauta muito trumpista. Isso até pode ter afetado em alguma medida a movimentação política, mas não estancou os esforços da administração pública dos Estados Unidos. Mais importante ainda, não inibiu a vigilância dos jornalistas.
A história que levou à declaração pública do TikTok admitindo que espionou jornalistas é um caso de dedicação pessoal e de um brilhante trabalho de jornalismo investigativo de Cristina Criddle, do Financial Times. Desde junho do ano passado, ela tem feito uma extensa cobertura sobre problemas administrativos do TikTok nos países democráticos. A empresa tem cultura chinesa, onde a proximidade com o Partido Comunista e os interesses nacionais estão acima das liberdades e direitos individuais.
Em que medida as plataformas ocidentais, como Facebook, Instagram, Google, YouTube, Whatsapp, Apple e Amazon precisam mesmo obedecer as leis de seus países-sede?
Os problemas foram surgindo e a jornalista tinha boas fontes, que forneciam documentos sobre eles. Como isso estampava o prestigiado Financial Times, tinha impacto financeiro sobre a empresa e também contrariava os interesses internacionais da China.
Cristina Criddle fez um trabalho primoroso sobre o que ocorria na filial inglesa do TikTok. Havia relatos de pedidos de demissão por jornadas de trabalho de mais de 12 horas por dia, demissões sumárias depois que alguém resolvia tirar a folga a que tinha direito e a criação de uma “lista mortal”, aqueles que deveriam ser fritados até serem extirpados do escritório.
O responsável pelo avanço dos negócios da empresa na Europa, Joshua Ma, teve de ser substituído depois que o Financial Times revelou correspondências internas em que ele dizia não acreditar em licença-maternidade, uma afronta clara às leis locais.
O ato de espionagem revela que não há um controle efetivo sobre a atuação dessas empresas. Isso faz com que elas tenham a possibilidade de violar direitos dos cidadãos em prol dos próprios interesses.
A ByteDance, dona do TikTok, resolveu conduzir uma investigação interna. Claro que não foi para entender por que seus executivos desobedeciam sistematicamente as leis de outros países. Foi para descobrir quem estava vazando as histórias para Cristina Craddle e outros veículos que se juntaram à busca por mais informações.
Ocorre que outra publicação econômica, a Revista Forbes, conseguiu os documentos com os dados dessa auditoria interna e publicou a reportagem. O TikTok violou a privacidade da jornalista do Financial Times, de uma outra jornalista do Buzzfeed norte-americano, de funcionários das duas empresas e de diversos dos contatos deles todos. A dona do TikTok obteve os dados de IP, local de residência e emails de repórteres e funcionários dos jornais e cruzou com os próprios funcionários para verificar se havia alguma coincidência. As operações foram conduzidas por funcionários da Big Tech chinesa entre junho e setembro do ano passado.
O escândalo internacional não se restringe aos fatos que foram revelados. Essa operação realmente aconteceu e está comprovada. Quantas outras operações semelhantes já foram feitas e estão sendo feitas agora mesmo? É a colisão entre duas visões de mundo muito diferentes, a das lideranças democráticas ocidentais e das lideranças autoritárias da China e da Rússia.
Outro ponto é que esse comportamento mostra que é possível uma Big Tech violar sistematicamente as leis e direitos em proveito próprio sem que as autoridades e a sociedade percebam. Nesse caso específico, claramente era por um interesse econômico. Nos casos investigados pelo departamento de Homeland Security, o que estava em jogo eram os interesses geopolíticos internacionais. Mas isso pode ser feito por qualquer tipo de interesse sem que as pessoas percebam.
Em que medida as plataformas ocidentais, como Facebook, Instagram, Google, YouTube, Whatsapp, Apple e Amazon precisam mesmo obedecer as leis de seus países-sede? O ato de espionagem revela que não há um controle efetivo sobre a atuação dessas empresas. Isso faz com que elas, na prática, tenham a possibilidade de violar direitos dos cidadãos em prol dos próprios interesses.
A única barreira real que impõe o respeito à privacidade do cidadão e ao ordenamento jurídico é a ética. Podemos confiar na ética dessas empresas bilionárias?
O incêndio está posto. Ainda acompanharemos as cenas dos próximos capítulos.