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Terminei de ler há alguns dias o ótimo livro A Primavera do Dragão, escrito pelo jornalista Nelson Motta, que retrata a infância, adolescência e juventude do cineasta baiano Glauber Rocha, um dos grandes expoentes e mentores do chamado Cinema Novo no Brasil. O livro de Motta, que também escreveu uma biografia de sucesso de Tim Maia, é uma coleção de fatos curiosos, anedotas e impressões sobre a trajetória e caráter do diretor responsável por obras como Deus e Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969).

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Apesar do projeto gráfico de gosto bem duvidoso, o livro é de leitura fácil, com capítulos curtos que mais parecem pequenas crônicas, no estilo acessível e bem-humorado de Motta. A proposta da obra é acompanhar a jornada de Glauber até o lançamento de Deus e o Diabo no Festival de Cannes, em 1964, onde o filme foi celebrado pela crítica, junto de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Boa parte do trecho final do livro, então, é dedicado a contar os detalhes da produção do filme e de sua exibição em solo francês. E é aí que residem as histórias mais curiosas.

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Com base no livro de Nelson Motta, o blog traz aqui cinco histórias pitorescas sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol,  um filme que pode não encantar o público atual, mas que merece ser resgatado e visto com atenção, ao menos para compreendermos essa geração que balançou o cinema nacional na década de 1960. Os trechos em itálico são os retirados diretamente do livro.

A revolta dos figurantes

Os figurantes que aparecem no filme são os próprios moradores de Monte Santo, pequena cidade do sertão baiano onde a produção foi rodada. O problema era que a grande maioria nem sequer sabia o que significava a palavra “cinema” ou “filme”, ou compreendia que tudo o que estava acontecendo ali era uma mera encenação. Tanto que na filmagem de uma das cenas, em que o beato Sebastião, interpretado por Lídio Silva, lidera uma procissão gritando “Vai tudo se acabar! Vai chover chover cem dias e cem noites! O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão!”, o espanto foi geral. Conta Nelson Motta:

A procissão imobilizou e emudeceu. Enfurecidos com o profeta agourento, os fiéis cercaram Lídio como se fosse o enviado do tinhoso, o mensageiro da desgraça. Um menino chutou sua perna, outro lhe deu um empurrão, uma velha beata socava o seu peito gritando “sai desse corpo, satanás”, a cena havia se transformado em uma alegoria glauberiana involuntária. (…) Surpreso e apavorado, com medo de ser linchado, Lídio disparou para a casa paroquial, perseguido pela multidão, enquanto Glauber estourava numa gargalhada e gritava “corta”. 

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Rifa e leite em pó

Na primeira metade do filme, várias cenas foram filmadas no topo do morro de Monte Santo, acessível por meio de 4 mil degraus escavados na pedra. Os figurantes haviam sido contratados por um salário mensal para ficarem à disposição da produção, mas não imaginaram que teriam que descer e subir o morro tantas vezes. Descontentes, em certo momento empacaram de vez e não queriam mais saber. Foi então que o produtor Luiz Augusto Mendes, o Gugu, teve de apelar: conseguiu desviar um carregamento de leite em pó que vinha da Embaixada dos Estados Unidos e seria distribuído entre famílias necessitadas do sertão e passou a distribuir aos moradores de Monte Santo.

Além do salário mensal, quem subisse o morro ganharia duas latas de leite em pó. Ao longo do dia, a notícia se espalhou e veio gente até dos vilarejos vizinhos para participar da filmagem.

Mais pra frente, parte das cenas tiveram de ser refilmadas e o povo novamente não queria saber de passar o dia subindo e descendo o morro. Dessa vez, Gugu comprou duas máquinas de costura Singer e um talão de rifas. Agora, quem participasse das filmagens automaticamente estava concorrendo às máquinas. Funcionou.

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Pedra acima

Uma das cenas mais impactantes do filme é a que mostra o vaqueiro Manuel, vivido por Geraldo del Rey, carregando de joelhos uma enorme pedra morro acima, acompanhado pelo beato Sebastião. Não se trata de um artifício cenográfico. A pedra era mesmo de verdade – pesava mais de 20 quilos! – e Geraldo fez questão de percorrer boa parte do morro com ela na cabeça pra gravar a sequência.

Penalizado com seu sofrimento, Waltinho (assistente de direção de Glauber) sugeriu que Geraldo carregasse uma pedra menor, ou só a colocasse na cabeça quando a câmera começasse a rodar. Estoico como um fanático, Geraldo recusou tudo. Sofreria na própria carne o calvário do vaqueiro Manuel. No fim do dia, Geraldo estava exausto e ferido (…) O peso da pedra comprimiu durante horas seus músculos e nervos do pescoço e o imobilizou por vários dias. 

Uma princesa no sertão

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A atriz carioca Yoná Magalhães foi a escolhida para interpretar Rosa, mulher do vaqueiro Manuel. Não só devido ao seu talento – ela era a musa de Luiz Augusto Mendes, o Gugu, produtor de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Belíssima e um tanto quanto exótica — pelo menos para os habitantes de Monte Santo — Yoná despertou a curiosidade e a atração dos moradores locais.

Com a pele muito branca e os cabelos negros descendo pelos ombros, sempre de óculos escuros e chapéu, envolta em véus para protegê-la do sertão, Yoná era a mulher mais linda e misteriosa que Monte Santo já vira. (…) Logo correu a lenda, não só em Monte Santo, mas nos vilarejos vizinhos, de que Yoná era uma princesa de verdade e que Gugu cobrava dez cruzeiros de cada pessoa que quisesse entrar na casa e vê-la de perto por alguns segundos. Uma multidão curiosa cercava a casa paroquial (onde Yona estava instalada durante as filmagens). Para tentar serenar os ânimos, o padre teve que celebrar uma missa, com Yoná de corpo presente, e dedicar o sermão a explicar aos fiéis que ela não era uma princesa, mas uma atriz, embora ali ninguém soubesse o que era uma atriz. 

Caindo de maduro

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Em outra sequência passada na escadaria do morro de Monte Santo, o pistoleiro Antonio das Mortes, vivido por Maurício do Vale, massacra a tiros uma multidão de devotos. Não foi fácil explicar para os moradores da cidade que eles deveriam “morrer” e desfalecer no chão. Muitos correram assustados ladeira abaixo. Coube à atriz Yona Magalhães tranquilizar os figurantes de que ninguém ia morrer de verdade, tratava-se só de uma “brincadeira”. A complicação continuou na hora da filmagem.

Glauber mandou a câmera rodar, gritou “ação”, e Maurição começou a atirar nos beatos. Sob a fuzilaria de festim, os figurantes desabavam como sacos de batata. “Corta!”, gritou Glauber. Waltinho explicou aos figurantes, bem alto, escandindo as palavra: “Não dá pra morrer assim. Tem que cair lentamente. Len-ta-men-te.”. Ninguém se mexeu. Waltinho gritou: “Então vamos ensaiar. Todo mundo morrendo”. Ninguém se mexeu. Glauber veio em seu socorro e esclareceu: “Vocês têm que cair bem devagarinho. Bem de-va-ga-ri-nho, entenderam?”. Todo mundo morreu como Glauber queria, e depois os assistentes os lambuzaram com litros de chocolate escuro, o sangue em preto e branco de uma produção modesta. 

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