Já falei algumas vezes aqui no blog que sou um fã quase irrestrito de Martin Scorsese. Coleciono a filmografia do diretor e tenho fixação por alguns de seus filmes, mas, ao mesmo tempo, o admiro por sua paixão pelo cinema e pela sua trajetória pessoal. Em um post recente aqui no blog, comentei que Scorsese dedica parte considerável de seu tempo a defender e restaurar obras antigas, além de contribuir para documentários sobre a história do cinema. Marty, antes de ser um cineasta, é um cinéfilo convicto.
Pois agora ele ataca novamente. Em meio às entrevistas e maratonas de divulgação de seu mais recente filme, O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street), Scorsese divulgou uma longa e inspiradora carta aberta a sua filha, Francesca. O tema: o futuro do cinema. A carta foi publicada inicialmente na versão online do jornal italiano L’Espresso e em seguida passou a ser replicada em outros sites.
Francesca, de 14 anos, é a filha mais nova de Scorsese (ele tem três no total) e atuou em papéis pequenos (praticamente como figurante) em três filmes do pai: A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), O Aviador (The Aviator, 2004) e Os Infiltrados (The Departed, 2006). Na carta dirigida a ela (e a todos os amantes do cinema e integrantes da indústria), Scorsese discorre sobre o papel das novas tecnologias no cinema e sobre os desafios que têm motivado cineastas desde que os primeiros filmes foram lançados.
A carta começa com um tom um pouco melancólico, mas depois vira um manifesto em defesa da paixão por fazer filmes, que continua sendo o principal diferencial de qualquer diretor — e não as ferramentas tecnológicas ou o uso exacerbado do 3D. Scorsese cita que a ideia de cinema com o qual cresceu e que norteou seu desejo de investir na profissão está chegando ao fim. Mas, mesmo assim, afirma que “o futuro será brilhante“.
“Eu não acho que estou sendo pessimista quando digo que a arte do cinema e o negócio de filmes estão numa encruzilhada. O entretenimento audiovisual e o que nós sabemos sobre cinema — com obras sendo feitas por indivíduos — parecem apontar para diferentes direções. No futuro, você provavelmente verá menos e menos do que nós reconhecemos hoje como cinema em telas multiplex e mais e mais em pequenas salas, online e, eu imagino, em espaços e circunstâncias que não posso adivinhar”, escreve Scorsese.
Para o diretor, mesmo com essas mudanças, é possível dizer que o futuro do cinema será brilhante porque, pela primeira vez na história, filmes podem ser feitos com pouco dinheiro. Scorsese lembra que, em sua juventude, filmes de sucesso com baixo orçamento eram exceção ao invés da regra — enquanto hoje ocorre o contrário. “Você pode conseguir belas imagens com câmeras acessíveis. Você pode gravar sons, editar, mixar e regular cores em casa“, cita a carta.
Ao fim, vem a principal lição do texto, que todos os aspirantes a cineastas e mesmo aqueles já reconhecidos deveriam imprimir num cartaz e colar na parede do quarto. “Mesmo com toda a atenção dada às ferramentas usadas para produzir filmes e os avanços na tecnologia que conduziram a essa revolução, há algo importante para lembrar: os equipamentos não fazem o filme, é você que faz o filme”, declara Scorsese. Parece óbvio, mas não deixa de ser um bom lembrete em tempos de exaltação do 3D e afins.
Scorsese completa seu “discurso” relembrando de seu amigo e mentor John Cassavetes. “Se ele estivesse vivo hoje, nós certamente estaríamos usando todos os equipamentos disponíveis. Mas ele estaria dizendo a mesma coisa que sempre disse – você tem que ser totalmente dedicado ao trabalho, você tem que dar tudo de de si, e, em primeiro lugar você tem que manter a chama que o motivou a fazer o filme. Você tem que protegê-la com sua vida“, completa.
Inspirador, não?
No texto, Marty também exalta vários cineastas que, em suas palavras, têm sido “a exceção” na tendência geral de se fazer filmes. Na listra ilustre estão Wes Anderson, Richard Linklater, David Fincher, Alexander Payne, os irmãos Coen, James Gray e Paul Thomas Anderson.
Confira abaixo a carta de Scorsese, na íntegra (desculpem, mas não me arrisquei a traduzir tudo por conta):
Dearest Francesca,
I’m writing this letter to you about the future. I’m looking at it through the lens of my world. Through the lens of cinema, which has been at the center of that world.
For the last few years, I’ve realized that the idea of cinema that I grew up with, that’s there in the movies I’ve been showing you since you were a child, and that was thriving when I started making pictures, is coming to a close. I’m not referring to the films that have already been made. I’m referring to the ones that are to come.
I don’t mean to be despairing. I’m not writing these words in a spirit of defeat. On the contrary, I think the future is bright.
We always knew that the movies were a business, and that the art of cinema was made possible because it aligned with business conditions. None of us who started in the 60s and 70s had any illusions on that front. We knew that we would have to work hard to protect what we loved. We also knew that we might have to go through some rough periods. And I suppose we realized, on some level, that we might face a time when every inconvenient or unpredictable element in the moviemaking process would be minimized, maybe even eliminated. The most unpredictable element of all? Cinema. And the people who make it.
I don’t want to repeat what has been said and written by so many others before me, about all the changes in the business, and I’m heartened by the exceptions to the overall trend in moviemaking – Wes Anderson, Richard Linklater, David Fincher, Alexander Payne, the Coen Brothers, James Gray and Paul Thomas Anderson are all managing to get pictures made, and Paul not only got The Master made in 70mm, he even got it shown that way in a few cities. Anyone who cares about cinema should be thankful.
And I’m also moved by the artists who are continuing to get their pictures made all over the world, in France, in South Korea, in England, in Japan, in Africa. It’s getting harder all the time, but they’re getting the films done.
But I don’t think I’m being pessimistic when I say that the art of cinema and the movie business are now at a crossroads. Audio-visual entertainment and what we know as cinema – moving pictures conceived by individuals – appear to be headed in different directions. In the future, you’ll probably see less and less of what we recognize as cinema on multiplex screens and more and more of it in smaller theaters, online, and, I suppose, in spaces and circumstances that I can’t predict.
So why is the future so bright? Because for the very first time in the history of the art form, movies really can be made for very little money. This was unheard of when I was growing up, and extremely low budget movies have always been the exception rather than the rule. Now, it’s the reverse. You can get beautiful images with affordable cameras. You can record sound. You can edit and mix and color-correct at home. This has all come to pass.
But with all the attention paid to the machinery of making movies and to the advances in technology that have led to this revolution in moviemaking, there is one important thing to remember: the tools don’t make the movie, you make the movie. It’s freeing to pick up a camera and start shooting and then put it together with Final Cut Pro. Making a movie – the one you need to make – is something else. There are no shortcuts.
If John Cassavetes, my friend and mentor, were alive today, he would certainly be using all the equipment that’s available. But he would be saying the same things he always said – you have to be absolutely dedicated to the work, you have to give everything of yourself, and you have to protect the spark of connection that drove you to make the picture in the first place. You have to protect it with your life. In the past, because making movies was so expensive, we had to protect against exhaustion and compromise. In the future, you’ll have to steel yourself against something else: the temptation to go with the flow, and allow the movie to drift and float away.
This isn’t just a matter of cinema. There are no shortcuts to anything. I’m not saying that everything has to be difficult. I’m saying that the voice that sparks you is your voice – that’s the inner light, as the Quakers put it.
That’s you. That’s the truth.
All my love,
Dad
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