Lembro com carinho de uma certa noite na faculdade, em Itajaí (SC), quando algum professor passou para a turma Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001), um dos filmes mais cultuados e discutidos de David Lynch. Prato cheio pra rapaziada ficar discutindo por horas, buscando os significados ocultos da obra e as pistas deixadas pelo diretor para botar ordem na cabeça do espectador. É um filme belo, intrigante e desafiador, sem dúvida.
Mas se você achou Cidade dos Sonhos difícil e um pouco enigmático demais (e quem não achou?) precisa conhecer o primeiro trabalho do diretor norte-americano, Eraserhead (1977). Foram longos cinco anos para que o filme, escrito, dirigido e produzido por Lynch, fosse finalizado e finalmente visse a luz do dia. O resultado? Muitos dirão genial, tantos outros, chamarão de bizarro. Surreal já é um termo batido ao falar do diretor, então eu resumiria em um adjetivo: inspirado. Ainda mais se pensarmos que trata-se do longa-metragem de estreia de um cineasta até então desconhecido.
Descrever a sinopse do filme é uma tarefa um tanto quanto árdua e talvez até irrelevante, considerando-se a proposta da obra, mas vamos lá. Em Eraserhead, somos apresentados a Henry (interpretado por Jack Nance), um rapaz que trabalha em uma fábrica de impressão e recebe a notícia de que sua namorada teve um filho prematuro. Os dois vão morar no minúsculo apartamento de Henry, mas a garota o abandona logo em seguida, deixando-o sozinho com o bebê. OK, não é bem um bebê, mas sim uma espécie de mutante com cabeça de réptil que permanece com o corpo enfaixado em cima de uma escrivaninha.
Tentar racionalizar o roteiro, decifrando as minúcias de cada cena e os raros diálogos, é mesmo perda de tempo. Eraserhead pode até ter uma estrutura linear, mas o que vale aqui é a atmosfera que permeia todo o filme, num clima perturbador de constante pesadelo. Podemos até não compreender exatamente o significado do que está sendo mostrado, mas somos arrebatados pelas imagens surreais e intensas, a ponto de nos causar um espanto digno dos mais violentos filmes de horror. Aposto que boa parte dos espectadores que chegaram ao filme por acaso o abandonaram no meio da projeção. Não pela falta de sentido ou pela trama desconexa, mas pelo desconforto que é capaz de causar.
O editor-geral do livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, Steven Jay Schneider, conclui sua análise sobre Eraserhead com um parágrafo que deixa claro o impacto da obra de David Lynch: “Nenhum resumo da trama de Eraserhead, por mais ‘exato’ que seja, será capaz de comunicar o tom deste filme único e desafiador. As sensações de profundo incômodo ou mesmo horror provocadas pelo filme, que só aumentam quando ele é visto repetidas vezes, são simplesmente inesquecíveis”.
O crítico do The Guardian, Peter Bradshaw, em uma sucinta análise, definiu Eraserhead como um “pesadelo em preto e branco de horror e ansiedade”, para em seguida descreve-lo como “belo e estranho”. Essa última observação de Bradshaw vem a calhar. O fato de ser constantemente tachado por críticos e espectadores como “perturbador” não significa que o filme seja intragável ou grotesco. Pelo contrário. Eraserhead perturba por conseguir transpor tão bem para a tela aquelas imagens e sensações que só sentimos quando estamos dormindo e sofrendo de algum pesadelo incômodo.
Neste sentido, Lynch, em seu primeiro filme, surge como um verdadeiro artista, compondo imagens e sequências surreais sem, em nenhum momento, soar amadorístico, mesmo considerando a falta de recursos e orçamento. O tal bebê mutante, assim como a artista de bochechas deformadas que dança em um palco imaginário, nos causam ojeriza e espanto por serem tão palpáveis e tão “diferentes” de qualquer coisa que já tenhamos visto antes — tanto em sonhos quanto no cinema. É a soma da técnica com uma criatividade que poucos diretores possuem. Ao fim, pode-se dizer que Eraserhead não é um filme, mas sim uma experiência. Se você estiver aberto a ela, prometo que será mesmo inesquecível.
Já assistiu a Eraserhead? Qual a sua “teoria” sobre a trama do filme? Deixe seu comentário e análise aqui no blog!
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