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Feliz Natal: Selton Mello escancara os dramas de uma família disfuncional
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Não recordo se li isto num livro, vi em algum filme ou ouvi em uma conversa de bar, mas a questão é que homens e mulheres são seres complexos e, por isso mesmo, relacionamentos afetivos são coisas intrincadas, difíceis, tão complexas quanto. Há quem desencane e tente não se envolver emocionalmente. OK, é uma opção. Mas convenhamos que isso é bem mais difícil quando não estamos falando de laços amorosos, mas sim de sangue.

Muitos de nós crescemos com o ideal romântico de que famílias são um porto seguro para qualquer pessoa, o pequeno círculo sobre o qual depositamos nosso afeto irrestrito, onde encontramos paz, refúgio e inspiração. Pai, mãe, irmão, tia, sobrinho, primo. Amigos, namorados e esposas vêm e vão. Parentes, em geral, são pra sempre.

O amor que sufoca e constrange: relação afetiva entre mãe e filho não salva a ambos.

O amor que sufoca e constrange: relação afetiva entre mãe e filho não salva a ambos. (Foto: Divulgação)

Há, pra variar, um grande “porém” aí no meio. Famílias, mesmo aquelas com uma estrutura tradicional, não estão livres de serem acometidas por mal entendidos, ressentimentos, inveja, frustração e todo o tipo de sentimento negativo contra os quais procuraríamos proteção justamente no seio familiar. As chamadas famílias “disfuncionais” são mais comuns do que imaginamos. Estão aí, na casa ao lado. Ou dentro da sua própria casa, queira você reconheça ou não.

Essa longa e insossa introdução é para destacar o quanto pode ser doloroso e angustiante assistir a Feliz Natal (2008), filme de estreia na direção do celebrado ator Selton Mello, figurinha carimbada na cinematografia nacional e em séries e novelas por aí. Selton escancara os dramas de uma família de classe média alta em colapso, repleta de histórias mal resolvidas e formada por pessoas à beira de um ataque de nervos. Não espere nada “engraçadinho” e inspirador como Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006). O diretor — que também assina o roteiro — pega pesado. E dificilmente o espectador passará indiferente à experiência.

A trama gira em torno de Caio, personagem vivido pelo ótimo Leonardo Medeiros — que esteve também em filmes recentes como Cabra-Cega (2004), O Cheiro do Ralo (2006) e Lavoura Arcaica (2001), e atualmente pode ser visto na novela da Globo Em Família. Caio é o típico ovelha negra da família, o filho que sumiu por anos e decide dar as caras durante as festividades de Natal (daí o título do filme).

Leonardo Medeiros: ator dá vida a um homem atormentado que tenta superar o passado.

Leonardo Medeiros: ator dá vida a um homem atormentado que tenta superar o passado. (Foto: Reprodução)

A chegada do personagem ao antigo reduto familiar, onde estão o irmão e a cunhada e os pais divorciados, junto de outros “agregados”, é repleta de tensão e constrangimento, que explodem na tela. Toda a primeira meia hora de filme é dedicada a este encontro. Não sabemos o que de fato aconteceu para todos estarem tão reticentes à visita de Caio, principalmente o pai, mas já nos damos conta de que todos ali têm seus próprios dramas e problemas que não necessariamente estão ligados a ele. Para reforçar esses olhares e sentimentos mascarados, o diretor utiliza recursos que estarão presentes em toda a projeção: planos longos, sem cortes, e super closes no rosto dos atores, destacando suas feições e reações, mesmo em momentos em que não há diálogo. Só funciona, claro, porque Selton Mello tem um ótimo elenco à sua disposição e as atuações soam convincentes, sem apelarem para o dramalhão ou o exagero.

Propositalmente, há uma lupa em cima de cada personagem, escancarando suas falhas e contradições. Temos ali a mãe depressiva, entupida de remédios, o pai que vive às custas do filho e se aventura com uma mulher muito mais nova, o irmão bem-sucedido mas que vive amargurado pela culpa. O que Feliz Natal nos fornece é um breve recorte na vida dessas pessoas, já que o filme se passa ao longo de poucos dias. Mesmo após a partida de Caio, todos seguirão suas vidas da mesma maneira, a não ser por eventuais decisões tomadas ao longo da trama, que ficam sem resolução para o espectador.

Encarando feridas: retorno de filho ao seio familiar é doloroso e angustiante.

Encarando feridas: retorno de filho ao seio familiar é doloroso e angustiante. (Foto: Divulgação)

Falar mais sobre a trama pode diminuir a intensidade da experiência de assistir ao filme e buscar, no meio da projeção, as peças do quebra-cabeça que aos poucos mostrarão os acontecimentos que tanto perturbaram — e ainda perturbam — esta família. Há ali alguns lugares comuns, como a história da velha tragédia que segue o protagonista, mas nada que soe datado ou repeteco. Até porque a atenção está toda nos personagens e na interação entre eles. O passado soa distante demais, o que torna ainda mais doloroso o fato de que, mesmo depois de tanto tempo, não é possível conversar cara a cara. Mas não é justamente isso o que ocorre com frequência em nossas próprias famílias? O ressentimento talvez seja mesmo o sentimento mais difícil de ser superado — não importa se o que o gerou foi uma frase dita às avessas ou uma traição.

O filme de Selton Mello é uma boa mostra do cinema brasileiro que consegue fugir dos rótulos e “tendências” e apresenta uma história universal, que poderia ser filmada em qualquer país. Para quem acha que as obras nacionais se restringem às comédias pastelão, filmes passados no Nordeste ou em favelas do Rio e São Paulo, aí está um bom respiro. Feliz Natal está longe de ser uma produção “comercial” ou com potencial para dialogar com o grande público — até por conta do clima de opressão que ronda o filme —  mas é uma obra madura, seja pela técnica ou conteúdo, mesmo em se tratando de um longa metragem de um estreante na direção.

Fica a dica: Feliz Natal está disponível no Netflix, assim como uma série de outros filmes nacionais, principalmente da última década, que merecem ser vistos e revistos.

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