Para Fitzcarraldo e sua inseparável vitrola, não há obstáculo que o impeça de realizar seu sonho máximo. (Foto: Divulgação)| Foto:

Vou adiar, hoje, a publicação do Top 5 de sexta-feira para lançar uma nova seção aqui no blog. Trata-se do “Grandes figuras da telona”, onde vou procurar lembrar alguns dos personagens mais marcantes, inesquecíveis e controversos do cinema. Apesar do ator que interpreta o “figura” ter todo o crédito, a ideia é fazer um breve perfil do personagem da ficção e qual sua contribuição ao filme em que aparece. Algo como o pequeno perfil que publiquei aqui um tempinho atrás, do nosso amigo Tony Montana, protagonista de Scarface (1983).

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Como de praxe, conto com a contribuição dos amigos leitores do blog. Lembra de algum personagem do cinema que lhe marcou? Gostaria de vê-lo “homenageado” aqui no Cinema em Casa? Deixe um comentário (o blogueiro agradece)!

Pra começar – ou continuar – ninguém melhor do que um famoso irlandês chamado Brian Sweeney Fitzgerald, dono de uma das personalidades mais instáveis e, ao mesmo tempo, inspiradoras do cinema. Ok, você não o conhece por seu nome de nascença, mas sim pelo apelido dado pelos nativos peruanos, a fim de facilitar a pronúncia: Fitzcarraldo.

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Dono de uma cabeleira loira sempre despenteada e de um inseparável terno branco, Fitzcarraldo é o protagonista do filme de mesmo nome, dirigido pelo alemão Werner Herzog em 1982 – que levou o Prêmio de Direção no Festival de Cannes pela obra. Seu intérprete é Klaus Kinski, parceiro de vários filmes de Herzog – apesar de os dois sempre manterem uma relação tensa que, ao fim, desbancou para agressões físicas e um rompimento total. “Cada fio de cabelo branco da minha cabeça eu chamo de Kinski”, disse uma vez o diretor.

Muitos críticos costumam dizer que Fitzcarraldo nada mais é do que uma metáfora sobre a derrocada da natureza ante o avanço da civilização, e como esse processo é guiado pela selvageria, sentimento de superioridade e destruição. A abordagem se encaixa perfeitamente na trama escrita por Herzog, mas eu prefiro uma análise mais, por assim dizer, poética. Fitzcarraldo é, antes de tudo, um filme sobre um sonhador. Um homem que, mesmo ridicularizado por todos e sufocado por fracassos, leva esse sonho às últimas consequências, ainda que precise abdicar de sua sanidade – e humanidade – para isso.

O sonho: construir um teatro de ópera no meio da selva amazônica. E, além disso, estreá-lo com a presença do tenor italiano Enrico Caruso. O fato de aparentemente ninguém no pequeno povoado de Iquito, no Peru, onde a trama se passa, dar a mínima para ópera, não parece o afetar. Fitzcarraldo botou a ideia na cabeça e, pra isso, passa os dias a pensar em maneiras de levantar a grana para sua inusitada empreitada. Passa a produzir gelo, mas as coisas vão devagar. Tem, então, um lampejo: vai virar milionário da noite para o dia extraindo borracha na selva, ao tomar para si um imenso pedaço da floresta até então intocado. Não à toa. O local não foi explorado porque é praticamente impossível chegar até lá por rio ou por terra. Acontece que Fitzcarraldo tem as duas qualidades necessárias para a missão. É louco. E é gênio.

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Desde os primeiros minutos do filme, é fácil perceber isso. O irlandês é Dom Quixote travestido de homem de negócios. Quieto, humilde, até que ousem duvidar de seu sonho. Aí, perde as estribeiras. Numa das cenas mais antológicas, sobe até a torre da igreja e começa a bater os sinos, gritando a plenos pulmões, como uma criança contrariada, que quer seu teatro de ópera. E que a igreja vai ficar fechada até a cidade ter sua ópera! Vai parar no xilindró, claro.

Fitzcarraldo, ao menos, tem carisma entre os índios e, melhor ainda, junto à bela dona de um bordel, que é sua amante e também financiadora de seus arroubos – a personagem é interpretada pela belíssima Claudia Cardinale. É ela quem banca a  compra de um navio que levará Fitzcarraldo e sua tripulação até um recôndito ocupado por índios canibais. É lá que se iniciará a grande empreitada que é o foco da história. Em um dos pontos da floresta, o descabelado fã de ópera pretende arrastar o imenso barco morro acima, até que consiga atingir o rio que está do outro lado e, assim, ter acesso à terra onde irá retirar borracha. Tudo isso, vale lembrar, para financiar seu teatro de ópera.

A missão é impressionante, não só pelo esforço empreendido e as diversas dificuldades – e até mortes – envolvidas, mas porque de fato foi levada a cabo, sem efeitos especiais, pelo diretor Werner Herzog. O diretor fez questão de usar um barco verdadeiro, de mais de 100 toneladas. Assim como Fitzcarraldo, Herzog foi obsessivo até o fim. E conseguiu, enfim, atravessar o morro com a embarcação, sem a ajuda de efeitos especiais. A épica e surreal sequência cinematográfica e as filmagens caóticas no meio da selva, ao estilo de Apocalypse Now, viraram tema do documentário Burden of Dreams, lançado por Les Blank.

O filme não chega a ser perfeito como ‘Aguirre’ (filme dirigido por Herzog também com Klaus Kinski em 1972), mas como documento de uma busca e de um sonho e como registro da audácia de um homem, do estúpido e visionário heroísmo, não há nenhum filme parecido“, escreveu o renomado crítico Roger Ebert sobre Fitzcarraldo.

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Depois de tanto sofrimento, o sujo e destemperado Fitzcarraldo consegue abrir seu teatro de ópera na Amazônia? Sinto dizer que não. Mas mesmo assim recorre a mais uma ação inusitada e, do seu modo, cumpre sua promessa, em um dos desfechos mais tocantes do cinema.  No fim, Fitzcarraldo é aplaudido. É o rei de seu reino particular. É louco. É gênio. É um sonhador. E um fã de ópera.

Algumas frases célebres de Fitzcarraldo (em traduções literais):

“Essa igreja vai ficar fechada até que esta cidade tenha seu teatro de ópera! Eu quero o teatro de ópera! Eu quero meu teatro de ópera!” (berrando na torre da igreja, enquanto bate nos sinos)

“Eu estou fazendo isso porque eu tenho um sonho… a ópera” (ao explicar porque está gastando dinheiro e esforço produzindo gelo)

Nós vamos arrastar aquele navio sobre a montanha. E os ‘bundas-peladas’ vão nos ajudar” (ao explicar seu estrambólico plano para chegar com o navio até um outro rio)

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“Por Deus do céu, meu navio! Eu preciso parar meu barco!” (ao perceber que os índios haviam libertado a embarcação em meio às corredeiras)

“Eu tenho que manter a promessa a um porco que ama muito Caruso” (sendo fiel até o fim ao animal de estimação que mantém no casebre onde mora)

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