Meio entediada, uma bela loira senta em um banco em frente a uma pequena escola do interior. Atrás dela, sem que perceba, um corvo pousa em um brinquedo do playground. A câmera volta a mostrar o rosto, os olhos perdidos da moça, pensando na vida. Corte para mais pássaros chegando no pátio da escola, silenciosos. Aí tem. A loira acende um cigarro, dá uma tragada. Desta vez, a câmera permanece nela por mais tempo, deixando quem assiste a cena roendo as unhas. Afinal, sabemos que, logo ali atrás, um cenário de terror está prestes a ser apresentado. Enfim um novo corte mostra o playground da escola totalmente tomado por pássaros. E, daí em diante, nem os jovens alunos estarão a salvo da fúria das aves.
A estratégia de compartilhar com o espectador o perigo imediato que ronda os personagens da história, sem que estes personagens saibam disto, é um dos recursos mais eficientes e icônicos dos suspenses dirigidos por Alfred Hitchcock – manha que seria copiada por nove entre dez thrillers a partir de então. Em Os Pássaros (The Birds, 1963), o recurso mais uma vez nos deixa petrificados, em vários momentos. O filme, um suspense apocalíptico sobre uma cidade que é devastada por pássaros, completa em 2013 50 anos como uma das produções mais enigmáticas do diretor.
Os Pássaros é baseado em um conto da escritora britânica Daphne Du Maurier, apesar de que o roteiro escrito por Evan Hunter a pedido de Hitchcock preserva só a premissa geral do texto. O filme foi o primeiro feito pelo diretor depois do sucesso de Psicose (Psycho, 1960), lançado três anos antes. Após se dedicar um tempo à sua série de TV, Hitchcock estava mesmo atrás de um novo desafio que se equiparasse à sua obra-prima anterior. Deu de cara com o conto de Du Maurier e uma série de notícias duvidosas publicadas em jornais da época, que retratavam episódios envolvendo supostos ataques de pássaros, sem qualquer motivo aparente. Aí, a mente do diretor voou longe.
Engraçado que Os Pássaros é um filme que, até hoje, divide opiniões de muita gente. Há os que amam, os que odeiam, os que simplesmente o relegam ao balaio de filmes secundários de Hitchcock. Talvez por ser uma produção mais voltada ao terror do que ao suspense característico do diretor, que privilegia aqui o horror encarnado na figura dos pássaros e os efeitos assustadores – foram ao total 371 trucagens visuais (nada de efeitos de computador na época), que misturaram pintura matte, pássaros mecânicos e reais, filmagens em estúdio e em locação. Uma empreitada desafiadora, já que, no decorrer da trama, somos convencidos sem grande esforço de que aquelas centenas de pássaros são reais e, sim, oferecem perigo.
A história se desenrola ao redor de um casal – uma esbelta socialite loira e um advogado – que se conhece por acaso em uma pet shop em San Francisco. A loira fica encucada com o rapaz e resolve lhe fazer uma visita surpresa na pequena cidade litorânea de Bodega Bay, onde o rapaz mora com a mãe e a filha. O que poderia ser a premissa de uma comédia romântica – com um homem viril e atencioso tendo a atenção disputada por diversas mulheres – se transforma em uma série de episódios de terror, onde não há nenhuma explicação a respeito. De um momento para o outro, os pássaros se rebelaram e, unidos, passam a botar os humanos pra correr.
Azar da modelo Tippi Hedren, que, em seu primeiro filme, sofreu um bocado nas mãos de Hitchcock – a relação tempestuosa entre os dois virou até trama de filme, o recém lançado The Girl (2012). Em um dos momentos mais tensos de Os Pássaros, a personagem de Tippi entra em um quarto e é furiosamente atacada pelos pássaros que tomaram o ambiente, o horror estampado em closes no rosto da atriz e nas bicadas que devastam seu corpo e roupa – difícil não pensar na famosa cena do chuveiro de Psicose. A cena, que dura apenas dois minutos e 10 segundos, demorou longos cinco dias para ser filmada, levando a Hedren à exaustão e ao hospital.
Há quem diga, inclusive, que a longa filmagem foi uma espécie de “pegadinha” de Hitchcock, um castigo pela atriz ter resistido ao avanços libidinosos do diretor – versão que, até pouco tempo, continuava sendo descartada por Hedren, talvez para não criar polêmica. O fato é que, antes da filmagem, Hitchcock havia prometido que a sequência seria feita com pássaros mecânicos. Somente no dia de rodar as cenas Tipi Hedren descobriu que o que a aguardava eram pássaros de verdade, em grande parte – a possibilidade de recorrer a bonecos nunca havia passado pela cabeça do diretor.
A aterrorizante cena – difícil não esconder os olhos diante do ataque dos pássaros – é crucial para o desenlace do filme. Com a bela loira gravemente ferida, o advogado vivido por Rod Taylor decide tentar escapar da cidade, acompanhado da mãe e da filha. E aí surge o polêmico final. Os sobreviventes saem de casa e dão de cara com todo o território à sua frente tomado pelas aves silenciosas e ameaçadoras. Com muito cuidado, entram no carro, dão a partida e começam a seguir pela estrada. E é isso. The End. Fim da história.
Conseguiram chegar sãos e salvos a San Francisco? O ataque dos pássaros se restringiu à cidade litorânea ou tomou o mundo? Afinal, o que levou os bichos a atacarem? Hitchcock nos priva de respostas. E, assim, possivelmente torna o fim da história muito mais icônico e impactante do que qualquer outro final mais convencional faria.
Vale destacar que, aqui, o diretor não seguiu o roteiro. A história escrita por Evan Hunter ia mais longe e acompanhava um pouco mais o trajeto de carro dos quatro sobreviventes. Em certo momento, os pássaros atacavam a cobertura de lona do carro, os bicos surgindo acima das cabeças dos ocupantes, até que a capota, reduzida a trapos, subia e deixava todos à mercê dos animais. Rod Taylor então acelerava o carro e conseguia escapar da perseguição.
O final original é mais movimentado, sem dúvida, mas ainda prefiro o The End filmado por Hitchcock. E pra você, quais são as lembranças mais aterradoras do filme? É fã da obra ou não engoliu a trama meio sem pé nem cabeça? Comente aqui no blog!
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