Bigamia, poligamia e até o eufemismo "poliamor", usado pelos adeptos da libertinagem, podem parecer "coisa das arábias", onde sultões mantém dezenas de mulheres em haréns para satisfazer seus prazeres sexuais e homens comuns são autorizados a ter mais de uma esposa debaixo do mesmo teto. Mas não é exagero dizer que tais ideias avançam sorrateiramente pela sociedade brasileira.
Na última década vários casos ocorridos em cartórios e nos tribunais abriram brechas para que assuntos antes restritos a quatro paredes (às vezes em casas de amantes) começassem a ganhar vulto de forma a incutir nas pessoas a noção de que determinados comportamentos devem ser tolerados. Conto detalhes no vídeo que está no topo da página, mas descrevo também aqui, em texto, para quem prefere ler a assistir ou ouvir.
Antes de falar dos casos judiciais que inspiraram este artigo proponho algumas reflexões. O Estado deve reconhecer relações extraconjugais de um homem casado, que assumiu legalmente o compromisso de viver em relacionamento único com uma mulher, teve filhos, formou família?
Parece pergunta de ordem moral, mas se você respondeu sim, porque acha que cada um faz o que quer desde que arque com as consequências e que ninguém tem nada com isso, trago outro questionamento. Por que, então, esse homem se casou? E por que não se separou antes de buscar nova companheira? Para que existem as instituições do casamento e do divórcio, afinal?
Não me refiro a casamento religioso e sim, ao civil, que é uma formalização jurídica das uniões entre homem e mulher (atualmente até entre pessoas do mesmo sexo), justamente para garantir direitos aos dois e aos filhos que surgirem dessa união ou forem adotados pelo casal. A pergunta vale para situações invertidas também, em que uma mulher casada decide ter um amante.
A discussão é cada vez mais comum nos tribunais de Justiça e, da forma como vem sendo decidida, abre portas para a aceitação de bigamia e poligamia. Há margem para mais reflexão, antes de entrar nas questões do Judiciário, que não cansa de nos surpreender negativamente.
Um homem que assumiu a relação com uma mulher perante a lei, registrou a união em cartório (seja casamento ou união estável) e que depois descumpre o compromisso que assumiu, tem até filhos com outra mulher, pode ser condenado a dividir tudo o que tem com as duas famílias? E de maneira igual?
Se for o contrário? Se a mulher trair o marido, tiver filho de outro homem, estando casada, quem deve arcar com as despesas de sobrevivência, educação e lazer da criança? A responsabilidade financeira, nesse caso, seria maior para o verdadeiro pai da criança ou deve pesar mais sobre a mulher que não respeitou o compromisso da relação conjugal exclusiva com o marido e correu o risco de engravidar? E os filhos do casamento legítimo dela como ficam? Podem perder parte do direito que tinham à herança materna, por exemplo, para um meio irmão?
Questões assim, quando chegam à Justiça, deveriam ser analisadas apenas dentro do que diz a lei, mas não é o que está acontecendo. A lei protege os casamentos. Nas sentenças, porém, juízes estão emitindo juízo de valor moral e dando à segunda família o mesmo peso da família legalizada pelo casamento. Enquanto isso a sociedade, que somos todos nós, está distraída demais com outros assuntos, como as brigas políticas e ideológicas e as bobagens ditas nas redes sociais.
Em geral as pessoas não estão percebendo o perigo que a sociedade corre de perder toda a sua base. Decisões favoráveis em julgamentos de casos de amantes que entram na Justiça para exigir pagamentos de pensões ou distribuição de heranças, começam a enterrar valores morais que sustentam as famílias, como a monogamia.
Deixar esse conceito de lado, reconhecendo o concubinato com o mesmo peso do casamento ou da união estável e menosprezar a família em prol de uniões ilegítimas é por em risco a própria sociedade da forma como a conhecemos, já que ela é baseada na existência das famílias. Desde criança ouvimos que a família é a base da sociedade. Ao menos era o que se ouvia, em tempos de menos doutrinação nas escolas. Se essa base é destruída, o que resta?
Decisões judiciais, bigamia e poligamia
Reportagem recente da Gazeta do Povo, publicada na semana passada, mostrou que uma união estável, extraconjugal, concomitante ao casamento, foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).
Eis um resumo da história. Num julgamento em que 5 juízes analisavam o caso, quatro aceitaram a tese da mulher que acionou a Justiça para que a união dela com um homem casado fosse reconhecida. Ela pediu o direito de receber parte da herança deixada pelo antigo amante, que já morreu, com quem teve uma relação de 14 anos, enquanto era legalmente casado.
Quatro juízes reconheceram a amante como companheira legítima simplesmente porque ela teria provado que a esposa oficial tinha conhecimento sobre o caso extraconjugal do marido. Um único juiz foi contra o pedido, alegando que não haveria sequer necessidade da figura jurídica do casamento civil se fosse para admitir que qualquer outra relação fora do casamento tem igual valor legal.
Os juízes deixaram claro que a mulher vai precisar abrir novo processo pedindo a partilha dos bens adquiridos pelo amante enquanto vivia a relação extraconjugal, mas na prática o que o TJ do Rio Grande do Sul fez foi reconhecer a união daquele homem com as duas mulheres ao mesmo tempo.
A decisão é altamente controversa, porque, como mencionei antes, abre brechas para a narrativa de que a bigamia é reconhecida oficialmente no Brasil. E daí para se endossar o discurso da poligamia é um passo. Não à toa saltam à mente aquelas histórias de sultões muçulmanos com seus haréns de escravas sexuais. Quem aceita isso no nosso mundo cristão ocidental?
E se você está pensando no direito dos filhos, que não têm culpa das atitudes dos pais, saiba que há outras leis protegendo as crianças, mas esse assunto específico atinge o Direito de Família. No Brasil ele é norteado pelo princípio da monogamia. O Judiciário não deveria sequer admitir duas entidades familiares ao mesmo tempo, porque isso fere o Código Civil e a Constituição Federal.
A decisão do judiciário gaúcho foi baseada em critérios morais e não, jurídicos, o que é triste para a Justiça brasileira e também para a sociedade. Mais uma vez estamos caindo no vazio de instituições fracas, que não conseguem sequer respeitar as leis em vigor no país. E que vão minando as relações e o padrão moral existente para proteger as pessoas em prol da defesa de pequenos grupos que não respeitam a lei.
Quando os limites da moralidade são quebrados, todos ficam ao relento. Não é, portanto, a liberdade individual que está em jogo nos processos de amantes e sim, o direito coletivo à segurança jurídica e à manutenção dos costumes aceitos e seguidos pela maioria.
Este é o pensamento do único juiz que discordou dos outros quatro colegas no julgamento no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos disse que se o Judiciário reconhece que um homem tem o direito de ter duas famílias, desde que as esposas estejam “de acordo”, não há sentido em existir o casamento civil, que foi criado justamente para dar segurança jurídica às famílias formadas a partir da união de um homem e uma mulher.
O assunto é grave e quem defende a família precisa acordar para isso, porque não foi o primeiro caso e, em breve, estaremos diante de outro semelhante, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Registros de amantes em cartório
Em 2016, depois de alguns anos de notícias de que alguns cartórios estavam reconhecendo a união estável de mais de duas pessoas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi provocado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) a se pronunciar. Naquela época já havia um caso no Rio de Janeiro e outros dois nas cidades paulistas de São Vicente e Tupã, em que homens conseguiram registrar duas esposas.
De imediato o CNJ determinou que nenhum cartório do Brasil concedesse esse tipo de certidão até que a questão fosse analisada. A decisão definitiva veio em 2018, quando o órgão proibiu a concessão de registros civis para uniões compostas por mais de duas pessoas.
Em nível cartorário a questão está pacificada, portanto. O problema é que as tentativas de burlar a lei migraram para a Justiça e agora alguns casos estão chegando à instância máxima: o Supremo Tribunal Federal. Chegamos ao cúmulo de ver o STF ter que julgar se um brasileiro pode ou não viver em bigamia e poligamia. E como todos conhecemos nossos ministros, não se espante com o que vai ler nos próximos parágrafos.
Ações no STF
Neste momento, o STF lida com dois recursos extraordinários. Um deles ainda não foi julgado. O outro julgamento começou no ano passado, foi suspenso, mas está em vias de voltar à análise dentro de poucas semanas, em dezembro. É uma ação que começou no Tribunal de Justiça de Sergipe, um pedido de divisão da pensão de um homem entre a esposa e o amante, um outro homem. Como o pedido foi negado pela justiça estadual de Sergipe, o homem recorreu ao STF.
No Supremo, em Brasília, o julgamento começou em setembro de 2019, mas foi interrompido, porque o ministro Dias Toffoli pediu para analisar melhor o caso. Cinco ministros já tinham votado a favor: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Carmen Lúcia e Marco Aurélio Mello. Três ministros foram contra: o relator, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Faltam três por votar: Toffoli, Luiz Fux e o recém-empossado Kássio Nunes Marques.
Se o STF decidir que a pensão de um homem deve ser dividida entre sua esposa e seu amante, a sentença não estará apenas afrontando a Constituição, que é clara ao estabelecer que a união estável é constituída por duas pessoas e não, três ou mais. Uma sentença assim pode abrir precedente para muitos outros casos, já que esse recurso terá repercussão geral, o que significa que a decisão do processo passará a orientar julgamentos parecidos em todo o país.
De novo, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) entrou na discussão e pediu ao STF licença para se manifestar sobre o recurso de Sergipe. Segundo a presidente da ADFAS, a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, “essa é uma porta que se abre para outros direitos, porque o Supremo estaria reconhecendo a existência de outro formato de família”.
Além da divisão de pensões, amantes poderão pedir divisão de previdência privada, patrimônio, plano de saúde. E ela pergunta: "E os filhos, como seriam tratados? Quem seriam os responsáveis pelas crianças nascidas de relações poligâmicas?"
Termino com um trecho de uma outra reportagem da Gazeta do Povo que pode ajudar na reflexão. A reportagem lembra que "do ponto de vista da legislação, o Brasil é um país monogâmico. Todo o arcabouço jurídico e administrativo prevê relacionamentos entre duas pessoas. Desde 1977, é possível se divorciar, e iniciar outro casamento, e, desde 2011, a união entre pessoas do mesmo sexo é reconhecida – mas são sempre duas pessoas conectadas em relação, nunca mais."
Assim, todas as questões patrimoniais e sucessórias, por exemplo, envolvem exclusivamente cônjuges e os filhos dessas relações, naturais ou adotivos. Amantes entram na figura legal do concubinato e não têm os mesmos direitos. É preciso que os juízes se atenham às leis sob o risco de entrarmos para a lista de países em que a poligamia é reconhecida legalmente, quase todos na África, além de Irã Síria e as nações muçulmanas.
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