As redes sociais e as áreas de comentários dos jornais estão repletas de citações a medidas que parecem ter dado certo em outros países e aqui não funcionam, seja isolamento social, distanciamento físico dentro de estabelecimentos, uso de máscaras, o que for. Falam do Japão, da Coreia do Sul, de Taiwan e da Suécia, mas ninguém diz o óbvio. Nesses lugares as coisas funcionam, porque a população se comporta de maneira diferente, seguindo as orientações que recebe.

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No Brasil não é praxe respeitar regras. O brasileiro, em geral, acha bonito dar um jeitinho de burlar as recomendação, até as leis. Essa mania nacional de ignorar o aviso para não ocupar assento preferencial no ônibus ou metrô, as vagas para idosos ou cadeirantes nos estacionamentos, as filas, os prazos, os horários... está mostrando o preço que a sociedade inteira pode pagar se não levar a sério as recomendações, os pedidos e até mesmo as ordens.

Num momento de pandemia como o que estamos vivendo, fica escancarado o custo social da rebeldia. Quem pensa só no próprio bem estar está prejudicando todo mundo. Respeitar regras é a única saída para vencermos, como nação, um inimigo invisível, veloz e perigoso como o cornoavírus. E quem não respeita as orientações, porque acha que tem saúde ou porque não está no grupo de risco, pode ter que carregar a culpa por se contaminar e, ainda que assintomático, carregar o vírus para dentro da própria casa e contaminar as pessoas que mais ama.

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Tapa na cara dos brasileiros

Eu resolvi falar sobre isso depois de ver uma foto de Portugal, ler uma notícia sobre Curitiba e lembrar de uma carta escrita anos atrás por um americano tendo como destinatário "o Brasil". Vou começar pela foto.

Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, no supermercado em Cascais.
A foto, tirada em 16/05/20 viralizou nas redes sociais. | Reprodução Twitter
| Foto: Reprodução Twitter

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, foi flagrado na fila de um supermercado em Cascais, num momento de folga. Usava tênis, shorts, blusa e máscara. E respeitava a fila e o distanciamento recomendado. Segundo informações já tinha chamado a atenção por passear sozinho e a pé pela cidade. A foto viralizou nas redes sociais como um exemplo, porque ele cumpria as recomendações das autoridades de saúde no momento em que o país entra numa nova fase de "desconfinamento", mas ainda repleto de regras.

Curitiba é exemplo, mas nem tudo são flores

Agora a notícia de Curitiba, onde a pandemia segue um ritmo de contágio bem lento. A cidade, de dois milhões de habitantes, tem 879 casos confirmados, sendo que 633 desses contaminados já se recuperaram. 34 óbitos morreram de Covid-19. Conforme o último boletim da noite desta terça (19), a cidade não registrou nenhuma morte nas 24 horas anteriores. Os números mostram que está em situação infinitamente mais tranquila do que outras capitais.

Sendo curitibana e tendo morado aqui a maior parte da vida, mas também com a experiência de quem morou em algumas outras cidades, de estados e regiões diferentes, não tenho dúvidas de que cidade é frequentemente citada como exemplo para o país justamente porque a população, em geral, aprendeu a respeitar regras. As coisas aqui costumam funcionar melhor do que em outros lugares, porque em geral a população respeita as regras, fiscaliza e cobra que todos respeitem.

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Quem é de fora se impressiona com a limpeza da cidade, por exemplo, e se ficar por uns meses, mais cedo ou mais tarde, vai acabar vendo curitibano chamando atenção de turista que joga papel de bala ou sorvete no chão. Ou catando ele próprio a sujeira alheia para jogar na lixeira mais próxima. Mas os curitibanos também são brasileiros e a notícia sobre Curitiba a que me referi agora há pouco tem a ver com desrespeito a regras.

Na reportagem (link acima), a secretária municipal de Saúde reclama que os curitibanos afrouxaram os cuidados no feriado de primeiro de maio, que caiu numa sexta-feira. A cidade registrou um movimento atípico, houve muitas informações sobre encontros de amigos, de família, churrascos e festinhas e, duas semanas depois, justamente o período de incubação da doença, o número de casos diários começou a dobrar.

Muitos dos que desrespeitaram a orientação de só sair de casa para ir ao médico, ao supermercado, à farmácia ou para trabalhar, no caso de quem presta serviços essenciais, sequer sentiram sintomas da doença. Mas ao se expor, podem ter se contaminado e levado o vírus para dentro de casa. Não por mal, só porque não respeitaram as regras e não pensaram nos outros, apenas em si mesmos.

Aí é preciso lembrar da constatação feita pelo governador de Nova York (e também por um levantamento na Espanha) de que num segundo momento dessa pandemia o contágio se dá entre pessoas que estão em quarentena. Se não houver respeito ao isolamento social e o máximo de cuidado quando precisar sair ou voltar para casa, o vírus entra em casa com a gente e contamina as outras pessoas.

E se elas contraírem e não tiverem sintomas, mas também desrespeitarem a quarentena, vão contaminar outras e mais outras. Sempre haverá algum hospedeiro mais frágil, que pode sucumbir à doença. Por isso fala-se tanto em só sair de casa para o estritamente necessário, usar a máscara sempre, manter a distância de dois metros de qualquer outra pessoa, não cumprimentar, não abraçar, usar álcool em gel ou lavar as mãos sempre que tocar em superfícies onde outras pessoas tocaram.

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Carta aberta ao Brasil

Eu mencionei acima que esta coluna também foi inspirada numa carta aberta para ao Brasil escrita por um americano. Mark Manson escreve crônicas e artigos, tem livros publicados, mantem um blog onde fala de assuntos que vão da literatura às suas percepções de mundo. Depois de visitar o Brasil várias vezes e de ter inclusive morado aqui por quatro anos e casado com uma brasileira, decidiu revelar as constatações que fez sobre nosso jeito de agir e o quanto, na opinião dele, isso está por trás do atraso do país.

“Nos países mais desenvolvidos o senso de justiça e responsabilidade é mais importante do que qualquer indivíduo. Há uma consciência social onde o todo é mais importante do que o bem-estar de um só. E por ser um dos principais pilares de uma sociedade que funciona, ignorar isso é uma forma de egoísmo."

Mark Manson, blogueiro e escritor americano, em carta aberta ao Brasil

"Eu percebo que vocês brasileiros são solidários, se sacrificam e fazem de tudo por suas famílias e amigos mais próximos e, por isso, não se consideram egoístas. Mas, infelizmente, eu também acredito que grande parte dos brasileiros seja extremamente egoísta, já que priorizar a família e os amigos mais próximos em detrimento de outros membros da sociedade é uma forma de egoísmo.”

Mais para a frente, na carta, o americano diz que o “jeitinho brasileiro” precisa morrer. A gente sabe exatamente o que ele quer dizer com isso. Não é nossa disposição e capacidade louvável de driblar dificuldades, achar soluções, resolver problemas de forma criativa e rápida. Ele refere-se à péssima mania do brasileiro de passar a perna nos outros e achar que isso é sinal de esperteza. Dar um jeito de lucrar em cima de terceiros pode ajudar o "espertinho", mas causa prejuízo aos demais. E a prática reiterada, prejudica a sociedade por inteiro.

Mark também fala de um certo conformismo nosso de empurrar tudo com a barriga e achar que, como os outros não buscam ser melhores, a gente também não precisa se esforçar. Continuando a carta... “Essa mania de dizer que o Brasil sempre foi assim e não tem mais jeito também precisa morrer. E a única forma de acabar com tudo isso é se cada brasileiro decidir matar isso dentro de si mesmo. Ao contrário de outras revoluções externas que fazem parte da sua história, essa revolução precisa ser interna. Ela precisa ser resultado de uma vontade que invade o seu coração e sua alma.”

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E agora o "filé mignon" da carta; o trecho que, embora escrito em 2016, encaixa-se muito bem no atual momento, em que estamos no pico da pandemia (que ainda deve durar semanas) e vendo pessoas minimizando riscos, saindo de casa sem necessidade, marcando encontros e indo para a rua sem os cuidados recomendados.

"Você precisa escolher ver as coisas de um jeito novo. Você precisa definir novos padrões e expectativas para você e para os outros. Você deve esperar das pessoas que te cercam que elas sejam responsabilizadas pelas suas ações."

"Você precisa priorizar uma sociedade forte e segura acima de todo e qualquer interesse pessoal ou da sua família e amigos."

Mark Manson, blogueiro e escrito americano, em carta aberta ao Brasil

Não é fácil mesmo ter que abrir mão da rotina fora de casa, viver confinado, isolar-se como um ermitão. Mas a tecnologia está aí para suprir nossas carências afetivas, a saudade dos amigos e parentes. Não será para sempre, mas pode ser menos sofrido se todos derem sua dose de contribuição pensando na coletividade.

Custa evitar por mais algum tempo os encontros presenciais? Por que raios tem gente visitando amigos, chamando para tomar café em casa, fazendo churrasco, festinha, combinando encontros, trocando cumprimentos e abraços? Nossos velhinhos não podem nem devem ficar abandonados. Podemos fazer as compras para eles e, na hora da entrega, bater um papo a dois metros de distância. Podemos ligar todo dia, ler uma poesia, contar de alguma lembrança, ouvir.

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Melhor recado da pandemia vem da Nova Zelândia

Quero finalizar esse texto com uma frase que ouvi da primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern. Para mim é simplesmente a melhor de todas as recomendações que qualquer um tenha feito durante a pandemia. Ela usou o verbo agir.

"Aja sempre como se você tivesse Covid-19"

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia

O que a governante que está vencendo a batalha contra o coronavírus quis dizer foi para ficarmos em casa o máximo possível. Quando precisar sair, usar máscara (mesmo sem ter sintoma da doença), manter as mãos limpas e a distância dos demais não apenas para proteção pessoal, mas especialmente para não contaminar os outros.

Estamos diante de uma chance dupla: conter o contágio e melhorar nosso comportamento como povo. Eu acho que é uma oportunidade e tanto para aprendermos de uma vez por todas a pensar no coletivo e não só nos nosso próprios umbigos.