Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Cristina Graeml

Cristina Graeml

"A meta de uma discussão ou debate não deveria ser a vitória, mas o progresso". Joseph Joubert.

Câmara dos Deputados

Por que discutir liberação do plantio de maconha no Brasil em plena pandemia?

Por que discutir liberação do plantio de maconha no Brasil em plena pandemia? Essa é a pergunta que todo brasileiro deveria estar se fazendo. É quase inacreditável que o tema tenha vindo à tona no momento em que as atenções se voltam para o coronavírus e estamos meio distraídos de tudo que não diga respeito às mudanças que a pandemia trouxe para as nossas vidas.

Mas tem deputado forçando a barra e levando adiante uma discussão sobre liberação do plantio da maconha no Brasil exatamente agora, como se não houvesse tantas outras coisas mais urgentes para votar. Pior: fazendo isso sem ouvir todos os lados, negando acesso à discussão a qualquer um que seja contrário e tentando fazer passar às pressas a votação da proposta, inclusive atropelando o processo natural de tramitação no Congresso.

O assunto "maconha" vinha sendo discutido na Câmara dos Deputados há cinco anos, desde que o deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE) apresentou um projeto (PL 399/2015) para modificar a lei de 2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. A ideia de Fábio Mitidieri era autorizar a comercialização no Brasil de medicamentos à base de Cannabis sativa.

Fora do Legislativo essa discussão já aconteceu e resultou em decisões que beneficiam os pacientes com prescrição para terapias à base de canabidiol. Em 2014 o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a prescrição de remédios com canabidiol; no ano seguinte a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou a proibição do uso de canabidiol e, em 2016, autorizou remédios com tetrahidrocanabinol (THC), principal substância psicoactiva encontrada nas plantas do gênero Cannabis.

Depois, em 2017, a própria Anvisa aceitou o registro do Metavyl, à base de Cannabis e, no fim do ano passado, deu parecer favorável a uma resolução autorizando a importação do princípio ativo da maconha para a produção, aqui no Brasil, de produtos destinados ao tratamento de pessoas com algumas doenças raras, desde que os pacientes tenham prescrição e acompanhamento médico.

Ainda assim a Anvisa chamou de "produtos", alegando que não podem ser classificados como remédios, porque não existem estudos comprovando a eficácia do uso de uma parte dessa planta para tratamentos de saúde.

Na Câmara dos Deputados o projeto que propõe autorizar legalmente a comercialização de medicamentos à base de canabidiol no Brasil vinha tramitando de forma lenta, como é natural para um assunto tão polêmico. Foi criada uma Comissão Especial para analisar a proposta. Os integrantes da Comissão passaram a estudar sobre o tema e a sugerir nomes de especialistas a favor e contra a ideia para serem ouvidos em audiências públicas. Desta forma a proposta vai amadurecendo até estar pronta para ser votada.

Com a pandemia o projeto, assim como milhares de outros, foi deixado de lado não só por questão de prioridade, mas também porque as comissões pararam de funcionar. Daí a surpresa agora com a apresentação de um substitutivo que muda completamente o texto do projeto original e parece tramitar a toque de caixa.

Substitutivo prevê liberação do plantio de maconha no Brasil

O substitutivo, apresentado há duas semanas pelo deputado Luciano Ducci (PSB-PR), prevê muito mais que o projeto original. Em vez de autorizar apenas a comercialização de medicamentos à base da planta Cannabis sativa, o texto inclui autorização para "cultivo da maconha, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, comercialização, importação e exportação".

A justificativa é a de facilitar o acesso a quem faz uso medicinal da maconha, já que a importação exige uma série de documentos e os remédios são muito caros. Mas há enorme temor de que isso abra caminho para a legalização da droga, como já ocorreu em outros países.

E foi justamente assim que parlamentares contrários à ideia viram a proposta, especialmente porque ela foi apresentada durante a pandemia, quando está mais difícil promover discussões amplas com o engajamento da sociedade.

Também chamou atenção o que aconteceu logo depois, esta semana. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), presidente da Comissão Especial que analisa o PL 399/2015, simplesmente passou por cima dos demais integrantes e, sem a aprovação dos colegas, agendou uma reunião virtual para discutir o novo texto apenas com convidados favoráveis à liberação do plantio da maconha no Brasil.

Deputados que pediram para participar, trazendo estudiosos do assunto que são contrários à ideia, tiveram os pedidos negados. Não à toa definiram como "malandragem" e "covardia" o que está sendo feito pela bancada que defende a liberação do plantio de maconha no Brasil.

O deputado Diego Garcia (Podemos-PR) classifica o substitutivo ao projeto de lei de 2015 como um verdadeiro facilitador da liberação da maconha no Brasil, enfatizando o perigo embutido no artigo 20, que permite uso medicinal irrestrito. "O doente pode até fazer uso recreativo da maconha", diz o deputado.

Ele destaca que, pelo texto do substitutivo, não haveria restrição nem mesmo quanto aos critérios para a prescrição de medicamentos à base de Cannabis sativa. Está escrito no substitutivo que qualquer profissional habilitado pode prescrever os remédios desde que haja anuência do paciente ou responsável legal e que os medicamentos poderão ser produzidos e comercializados “em qualquer forma farmacêutica".

O deputado Osmar Terra (MDB-RS) lembra que não é preciso autorizar a plantação da maconha no Brasil para que sejam produzidos remédios que usam o canabidiol. Já tem um laboratório de Toledo (PR,) autorizado pela Anvisa, que promete em breve produzir o canabidiol sintético, ou seja, nem vai precisar da planta. O canabidiol não é alucinógeno, não vicia, ao contrário da maconha.

A repórter Isabelle Barone publicou na Gazeta do Povo esta semana uma reportagem sobre o tema e ouviu, entre outros parlamentares, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE). No ano passado ele também apresentou um substitutivo ao projeto sugerindo que o Sistema Único de Saúde (SUS) fosse obrigado a fornecer gratuitamente remédios à base de canabidiol para pacientes que precisem da medicação, mas a sugestão não foi aceita.

"Por que nosso projeto não caminhou no Congresso, já que é questão de saúde pública? Isso esvazia o argumento de que há uma preocupação por parte dos deputados na saúde dessas crianças que precisam do medicamento. Não é esse o interesse deles."

Senador Eduardo Girão (Podemos-CE)

O senador também lembrou que em 2014, durante a Copa do Mundo no Brasil, outro momento em que o Congresso estava em recesso branco, houve uma tentativa como essa de agora. Na época a manobra foi barrada na última hora, através da Comissão de Direitos Humanos no Senado.

“Quem está por trás disso quer faturar e se utiliza de entidades e associações que têm vontade legítima e pura de ajudar crianças”, diz o senador, acrescentando que o objetivo do lobby do que ele chama de narconegócio é ganhar dinheiro. "Eles agem de forma sorrateira e para eles pouco importa quantas gerações a gente possa perder para as drogas."

Médicos contrários à proposta

Quem está na linha de frente do atendimento a doentes faz críticas até à forma como o assunto é apresentado. O uso do termo “maconha medicinal” é visto como uma tentativa de nos fazer acostumar com a ideia de que a droga tem efeitos benéficos. Um pediatra citado na mesma reportagem de Isabelle Barone, o Dr. João Becker Lotufo (doutorado em pediatria pela USP), explica que a expressão é usada de forma proposital para confundir a população.

Para provar sua tese ele cita o caso de outra droga que também tem um princípio ativo usado pela medicina: a heroína. Ninguém diz “heroína medicinal” e, sim, “morfina". O médico explica que as duas vêm da mesma planta, mas a morfina, usada em todas as emergências de hospital, é uma medicação bem estudada e conhecida. A heroína é uma droga que faz mal e vicia.

Ele também lembra que a maconha provoca leões irreversíveis, como perda da memória, atraso escolar e lesão cerebral com ou sem surto psicótico, principalmente quando o usuário começa a consumir antes dos 21 anos, quando o cérebro ainda está em formação. E é considerada a porta de entrada para drogas mais pesadas e ainda mais perigosas.

"Cada vez mais se fala em liberação da maconha sem se fazer as advertências a respeito do seu risco."

João Becker Lotufo, médico pediatra

João Becker Lotufo é representante da Sociedade Brasileira de Pediatria nas ações de combate ao álcool, tabaco e drogas. Segundo ele, o lobby da maconha não está interessado nos doentes e nem mesmo em quem usa a droga esporadicamente, de forma recreativa.

O foco está nos 30% de dependentes que consumirão 90% da maconha vendida. "A questão é financeira, como é a questão do tabaco, do álcool e agora do cigarro eletrônico. Estas indústrias não medem esforços para o aumento de venda e para viciar a população envolvida."

Outro estudioso do assunto, o médico psiquiatra Marcelo Von der Heyde, presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, diz que é desonesto o uso de exemplos de casos dramáticos de crianças com doenças crônicas e graves para defender a legalização da maconha. E revela o método dos defensores da liberação do plantio da droga no país.

Primeiro citam como exemplo crianças com síndromes raras, que tiveram indicação médica e correta para usar o canabidiol e melhoraram. Depois começam a usar os termos Cannabis medicinal, maconha medicinal e, por fim, surge a discussão da liberação da maconha.

As próprias marchas pela maconha começam a dar uma noção de que aquilo é defesa da liberação do remédio para que todos se acostumem com a ideia. Assim, quando deputados pró-maconha começam a fazer o que estão fazendo agora, há pouca contestação.

Maconha é uma droga ilícita, que é proibida, porque faz mal. Remédio de uso controlado, manipulado e vendido sob prescrição médica (e administrado com acompanhamento de um médico) é algo bem diferente.

Como manifestar sua opinião

Se você acha errado o momento e a forma como essa discussão está sendo feita e não concorda com a liberação do plantio de maconha no Brasil há sempre o caminho natural de tentar influenciar os votos dos parlamentares telefonando ou mandando e-mail para os gabinetes de deputados e senadores ou fazendo barulho nas redes sociais, marcando os perfis de quem você julga que representa suas ideias ou até daqueles contrários a você.

E é possível também votar a favor ou contra o projeto original no site da Câmara dos Deputados. Ao abrir a página, procure a janela do lado direito onde está escrito: PL 399/2015, o que você acha disso? Na tarde desta sexta (4) 52% dos que votaram eram totalmente favoráveis à liberação da comercialização de produtos medicinais à base de canabidiol contra 42% totalmente desfavoráveis.

Pelos comentários deixados lá fica claro que quem é favorável torce para que isso facilite a liberação da maconha no futuro. Quem é contra aponta exatamente essa possibilidade como o grande perigo da aprovação do projeto.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.