Democracia americana é uma combinação de palavras quase simbiótica. Os Estados Unidos são exemplo e modelo de democracia para o mundo, não apenas por terem surgido antes de todas as demais (em 1776, ano da declaração de independência da Grã-Bretanha), mas também por serem resultado de decisão popular e terem mantido, nesses 244 anos, a tradição de escolha de governantes pelo voto, ainda que via representantes.
Em tempos de mais uma eleição presidencial americana, em que, assim como no Brasil, a polarização espalhou um vírus de ódio pelo adversário e por todos os seus apoiadores, vale um resgate histórico: lembrar o que pensavam, diziam e como agiam os primeiros americanos, os homens que fizeram a declaração da Independência das 13 colônias britânicas na América, transformadas em Estados Unidos da América.
São os chamados “pais fundadores” dos Estados Unidos. Essa história e a forma como esses primeiros políticos se relacionavam, mesmo tendo profundas divergências, deveriam servir de inspiração para os líderes de hoje e cairiam bem como fonte de reflexão a todos os extremistas ideológicos que tentam impor as suas ideias, espalhando intolerância a quem pensa de forma contrária.
Nem todo mundo sabe, mas a história do surgimento da nação e da democracia americana é conhecida em detalhes, porque é bem documentada. Além dos registros oficiais, foi descrita em cartas trocadas por dois dos “pais fundadores”, John Adams e Thomas Jefferson.
Tendo sido adversários políticos a maior parte da vida, seus relatos de próprio punho trazem para nós a noção clara de como visões divergentes conseguem convergir quando o propósito é o mesmo: o bem comum.
Início da democracia americana
Antes de falar de Adams e Jefferson e de suas cartas aqui vai um breve resumo da guerra da Independência para quem não conhece a história ou não lembra das aulas do colégio.
Os Estados Unidos surgiram de uma revolução conservadora. Os colonos, que tinham migrado da Grã-Bretanha e da Irlanda para o outro lado do Atlântico, fugindo de pobreza e de perseguições religiosas, resolveram se insurgir contra a coroa britânica, porque não estavam sendo tratados de forma igual aos súditos que continuavam próximos do rei. E eles queriam preservar as regras a que eram submetidos antes.
A insubordinação não aconteceu, portanto, porque eles queriam mudar tudo o que a monarquia fazia, como foi o caso da revolução francesa, e sim, porque eles faziam questão de manter nas colônias americanas as mesmas regras que valiam na Grã-Bretanha e Irlanda e que não estavam sendo respeitadas.
O rei Jorge III vinha taxando os colonos americanos de forma diferente e impondo um regime de terror através dos soldados enviados à América para garantir a ordem e o pagamento dos tributos. O estopim foi quando o rei decidiu criar um imposto exclusivo para os colonos, cobrado sobre todo e qualquer material impresso (imposto do selo). Isso com o aval do parlamento, sem que os colonos tivessem representantes lá na hora da votação da lei que estipulou a cobrança, o que era um desrespeito à Constituição britânica.
A luta dos colonos, que resultou na independência da monarquia britânica, foi para manter o respeito ao direito de representação no Parlamento, bem como o respeito à igualdade entre as pessoas e às liberdades individuais. Foi, enfim, uma guerra para conservar o que já existia e funcionava bem. Estavam criados os alicerces para a democracia americana.
Internamente, as 13 colônias tinham seus líderes. Quando a relação com a Inglaterra começou a piorar esses representantes passaram a se reunir entre si, no chamado Congresso Continental, embrião do Parlamento americano.
Os políticos da época não concordavam em tudo, discutiram bastante até chegar ao consenso de optar pela declaração de Independência e decidir que a população deveria pegar em armas para expulsar os soldados britânicos. Eles precisaram formar um exército e fazer aliança com a França, inimiga histórica da Grã-Bretanha, para vencer as batalhas.
Dessas decisões, discutidas, votadas e aprovadas, nasceu não só o país, Estados Unidos, mas também o modelo de democracia americana que inspirou tantas outras nações pelo mundo, baseado na defesa dos direitos à vida, à liberdade e à busca pela felicidade, o que incluía o respeito à propriedade privada, à representação parlamentar, à justiça e às diferenças de opinião.
Pais fundadores dos EUA
John Adams e Thomas Jefferson são dois dos mais conhecidos "founding fathers" ou "pais fundadores" dos Estados Unidos. Adams, era um advogado de sucesso, com poder de persuasão, que contribuiu com muitas ideias para a nação americana antes, durante e depois da revolução. Thomas Jefferson foi quem redigiu a declaração de Independência.
Junto com Benjamin Franklin, George Washington, Alexander Hamilton, Samuel Adams e outros, menos conhecidos, formam o grupo que ajudou a transformar as colônias britânicas da América em Estados Unidos da América, uma nação independente.
Eles dedicaram a vida à política. Foram vice-presidentes e presidentes da República, sucedendo George Washington, o primeiro a governar o país. Washington, que dá nome à capital, foi o responsável por formar um exército de colonos para lutar a guerra da independência. Saiu vitorioso e era natural que fosse escolhido como o primeiro presidente dos Estados Unidos. John Adams, que foi o segundo mais votado, virou vice, e depois, por aclamação, tornou-se o segundo presidente da República, tendo Jefferson como vice. E Thomas Jefferson foi o 3° presidente nessa lista que agora, em 2020, chega ao 46°.
Nesse momento de tanta disputa política nos EUA e de tantos brasileiros tomando partido sem conhecer direito os fundamentos da democracia americana (ou saber que os pais fundadores superaram divergências pensando no bem comum, algo completamente esquecido pelos radicais de hoje), é oportuno olhar para a história de Adams e Jefferson.
Os dois discordavam em muita coisa, mas trabalharam unidos em prol da independência e da implantação das primeiras políticas públicas. Depois caminharam para lados opostos, se atacaram mutuamente, viraram inimigos políticos e se afastaram. Nos últimos anos de vida, já viúvos, tendo inclusive perdido filhos, morando longe, começaram a se corresponder. Essas cartas, preservadas pela família de John Adams, são uma relíquia, que traz não só a história mas lições para o presente.
Correspondência entre Adams e Jefferson
Pelas cartas, famosas na historiografia americana, sabemos hoje como foi a formação do Congresso Continental em que os representantes das colônias decidiram pela separação da coroa britânica; as circunstâncias em que aconteceu a guerra da Independência dos EUA; quais eram as divergências entre os políticos da época; como se estabeleceu a democracia americana e como esse dois adversários recuperaram a amizade no fim da vida.
Os arquivos foram resgatados pelo historiador americano David McCullough, autor do livro 1776. A História dos Homens que Lutaram Pela Independência dos Estados Unidos. E tem também a série John Adams, da HBO, inspirada nesse livro. Vale a pena assistir.
Do livro e da série, trago alguns trechos das conversas entre esses dois homens exemplares. Ambos dedicaram a vida à construção do país que tem a liberdade como marca registrada não só na estátua, vista por todos que chegam pela costa leste, vindos da Europa, pelo Atlântico.
Caso não queira ler, apenas ouvir, sugiro que clique no play do vídeo no topo da página, porque o texto se alonga ainda mais a partir daqui, embora seja sempre um prazer ver o raciocínio brilhante, a boa argumentação e as emoções traduzidos em palavras escritas.
A correspondência começa por John Adams, que escreve para Thomas Jefferson depois de perder a filha e a esposa. Jefferson já tinha vivido aquelas mesmas dores muito tempo antes. Adams busca apoio no antigo desafeto político, depois de instigado por um outro político a quebrar o gelo.
As palavras que o convenceram foram as de que alguns homens tinham falado, escrito e até lutado para promover a independência americana, mas só eles, Adams e Jefferson, tinham pensado pela nação inteira. Além de tudo, eram os últimos sobreviventes do grupo de fundadores dos Estados Unidos.
Para entender o impacto dessa correspondência, imagine se Biden e Trump tivessem vivido a disputa atual quando eram jovens e, agora, já com idade avançada e distantes da política há muito tempo, trocassem cartas de consolo e lembranças.
Adams para Jefferson: "Meu caro amigo, um problema nunca vem sozinho. Em nossa idade devemos esperar mais e mais deles todos os dias e todo dia menos força para enfrentá-los. Nos anos desde que nos separamos, perdi minha filha. Agora minha querida esposa por 54 anos foi tirada de mim. E vai para uma terra onde não haverá guerra, nem inveja ou ciúme. Sou seu afligido amigo, John Adams."
Jefferson para Adams: "Monticello [localidade onde morava, na Virginia, Estados Unidos] 6 de abril de 1819. Meu caro amigo, estive eu mesmo na escola da aflição humana, sei bem e sinto o que perdeste, o que sofreu, está sofrendo e terá ainda de suportar. Os mesmos percalços ensinaram-me que, para males tão imensuráveis, o tempo e o silêncio são os únicos remédios. É de algum conforto para nós dois que o fim não esteja muito distante, no qual depositaremos nossas mágoas e nossos sofridos corpos e subiremos a um extasiante encontro com os amigos que amamos e perdemos, e os quais ainda amamos e não perdermos jamais. Que Deus o ajude em sua pesada aflição. Seu amigo, Thomas Jefferson."
Depois de refazer contato dessa forma melancólica e quase poética, os dois passam a se escrever com regularidade, vão relembrando as desavenças e aceitando as diferenças, preocupados em como os fatos que viveram seriam contados às gerações futuras.
Adams para Jefferson: "Você e eu passamos nossas vidas em épocas difíceis, sofremos em ser os sujeitos passivos de discussões públicas, colhemos animosidades e amarguras. Eu tenho fixas minhas opiniões e estou velho demais para mudá-las, mas você e eu não podemos morrer antes de explicarmo-nos um ao outro."
"Enquanto houver um governo haverá diferenças de opinião. Todo mundo toma partido de muitos ou de poucos. Nada poderia ser adicionado por você ou por mim ao que tem sido dito por outros e será dito para sempre em todos os tempos."
Thomas Jefferson, em carta para John Adams
Adams para Jefferson: "Se é você ou sou eu quem está certo, a posteridade julgará. Ainda assim te pergunto: quem deverá escrever a história da nossa revolução? Quem pode escrevê-la?"
Jefferson para Adams: "Você pergunta quem deverá escrever a história da nossa revolução. Ninguém, exceto meramente seus fatos externos."
Adams para Jefferson: "Eu prefiro olhar aqueles dias em que Massachusetts e Virginia viveram e agiram em perfeita harmonia."
Nesse trecho Adams referia-se às discussões do Congresso Continental, quando se discutia a situação das colônias perante a Grã-Bretanha. Adams, representante do condado de Massachusetts, e Jefferson, representante da Virginia, tinham desavenças, mas acabaram se entendendo e votando juntos pela independência.
É uma história bonita, de formas diferentes de fazer política, que encontram convergência no olhar para o futuro. Em 1825, um ano antes do cinquentenário da declaração da Independência americana, o filho de Adams, John Quincy Adams, foi eleito o 6° presidente americano. Thomas Jefferson escreve dando parabéns.
Jefferson para Adams: "Monticello, 20 de fevereiro de 1825. Meu caro amigo, eu sinceramente congratulo-o pela alta gratificação a qual a última eleição deve ter-te dado. Deve inspirar sentimentos inefáveis no peito de um pai viver para ver um filho ao qual à educação e à felicidade devotou sua vida, tão eminentemente distinguido pela voz de seu país. Noites de repouso e dias de tranquilidade são os desejos que tenho para ti. Com meus afetuosos respeitos, Thomas Jefferson."
Coincidência
Os ex-presidentes Thomas Jefferson e John Adams morreram no ano seguinte, no mesmo dia. Há uma coincidência ainda maior, que pareceria exagero de imaginação de um ficcionista se não fosse verdade. Prepare-se, porque a informação vai te intrigar profundamente.
A data de falecimento de John Adams e Thomas Jefferson coincide com o aniversário de 50 anos da declaração de Independência dos Estados Unidos: 4 de julho de 1826.
Jefferson estava com 83 anos e morreu horas antes de Adams em sua casa na Virginia, sem que o amigo soubesse. No leito de morte em sua fazenda em Massachusetts, John Adams, aos 90, morreu dizendo para os filhos: "Jefferson vive", como se sentisse alívio porque a democracia americana não ficaria órfã.
Essa história e esse modelo de democracia sobrevivem, porque ainda há homens e mulheres dispostos a defender a liberdade, apesar das diferenças de opinião. Mas no nível de polarização, divergência e falta de diálogo em que a política chegou é sempre bom lembrar de uma outra frase célebre normalmente atribuída a Thomas Jefferson, mas que foi, na verdade dita, por outra pessoa: o abolicionista Wendell Phillips, décadas depois da morte dos últimos "pais fundadores"
"O preço da liberdade é a eterna vigilância."
Wendell Phillips
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