Estupro de vulnerável é crime previsto na Constituição brasileira (Art 217-A), que prevê prisão de 8 a 15 anos para adultos que fazem sexo com menores de 14 anos. O problema é que a própria Justiça começa a abrir exceções e absolver réus de processos por estupro de vulnerável, em casos em que a criança “consentiu”.
O mais assustador são os argumentos que embasam algumas decisões judiciais, como o de que “criança e adulto estavam apaixonados” ou que “foi de comum acordo que fizeram sexo”. E, o pior de todos, “a sociedade já aceita a erotização precoce de meninas”.
Dois casos recentes julgados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul escancaram a necessidade de nós, adultos, nos posicionarmos contra a indústria da moda, os programas de TV, os filmes, músicas e youtubers que estimulam a erotização de crianças e banalizam as relações humanas e o sexo. Ao que parece, resta apenas nós nesta luta, já que até a Justiça se rendeu e considera perdida a batalha.
TJ-RS absolve adulto que fez sexo com menina de 13 anos
Num julgamento em março de 2020 do TJ-RS, um jovem de 23 anos foi absolvido da acusação de estupro de vulnerável por manter relações sexuais com uma menina de 13 (dez anos mais nova que ele).
O rapaz foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público e o juiz de primeira instância não achou que era caso para condenação, porque os dois eram namorados e tinham o consentimento dos pais da menina. Estavam inclusive morando juntos num quarto da casa dos pais dela quando saiu a sentença de segunda instância no ano passado.
O promotor de defesa da infância não abriu mão do respeito à Constituição e à vulnerabilidade de menores de 14 anos e recorreu ao Tribunal de Justiça, mas os desembargadores tiveram o mesmo entendimento que o juiz de primeira instância.
Disseram que, apesar de ser um crime descrito na Constituição, não tinham por que condenar o jovem se a menina de 13 anos era namorada e concordou com o sexo. E ainda acrescentaram que se o pai e a mãe dela aprovavam o namoro, presumia-se que conheciam o nível de maturidade da filha e assumiam o risco do que pudesse vir a acontecer.
Imagino, sinceramente, a dificuldade de juízes para analisar casos assim. Todos sabemos que há jovens adultos imaturos, com cabeça de adolescente; e adolescentes mais maduros do que outros da mesma idade, em tese com uma melhor capacidade de discernimento sobre o que estão fazendo e cientes das consequências de suas decisões para o seu próprio futuro.
E sabemos também que há pais permissivos, cada um deve ser responsável pela educação que dá aos filhos. Por outro lado, todo mundo já foi criança, já foi adolescente e sabe também da timidez, da vergonha, da vontade de ser aceito e até do medo de rejeição caso se oponha à vontade dos outros, especialmente dos mais velhos.
E sabe que tudo isso influencia na hora de dizer sim ou não em situações delicadas. Não é só uma questão de paixão, envolvimento amoroso ou sexualidade. É vulnerabilidade mesmo.
O promotor, a meu ver, fez certo quando decidiu recorrer. Já a justiça... O que chama a atenção nessa sentença não é nem a justificativa para a absolvição do réu, alegando que o casalzinho estava “apaixonado e abençoado pelos pais”. Choca é a argumentação da juíza relatora do caso.
A desembargadora Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak destacou a existência de ‘‘sentimentos sinceros de carinho e de zelo’’ entre o réu e a vítima no processo. Disse também que as provas levantadas sinalizavam que a vítima tinha plena capacidade de entendimento da relação sexual e que, por isso, não podia ser considerada vulnerável. E agora vem o x da questão.
Para a desembargadora este não era um caso de abuso, mas de precocidade sexual. E ela disse que “seria hipocrisia condenar o réu num cenário em que a mídia — novelas, filmes, seriados e outros programas de televisão — estimulam, cada vez mais cedo, a sexualidade das meninas”.
Olhe isso! Uma juíza dizendo que seria hipocrisia condenar um homem adulto que fez sexo com uma menina de 13 anos, porque as novelas e programas de TV estimulam a erotização de meninas! A culpa seria das novelas, seriados e filmes? Isso não foi dito. Mas nas entrelinhas lê-se que se mundo está assim, só nos resta aceitar. Dane-se a infância. Pouco importa a Constituição.
Sexo entre adolescentes
Se o caso de adulto e criança fazendo sexo não foi enquadrado como estupro de vulnerável que dirá outro que chegou ao mesmo tribunal meses depois, envolvendo dois adolescentes, um rapaz de 17 e uma menina de 12.
A situação do casalzinho é parecida à anterior: os dois disseram em juízo que o sexo foi consentido. A menina tem 12 anos. Pode até ser considerada adolescente pelo ECA, mas é criança, na melhor das hipóteses alguém recém-saído da infância.
A diferença é que aqui a mãe da menina se opunha ao namoro e foi ela que denunciou o namorado da filha por estupro de vulnerável quando descobriu o que estava acontecendo. Como o acusado é menor de idade, tem 17 anos, foi condenado a prestar serviços à comunidade por seis meses.
Houve recurso também, agora por parte do advogado do réu, que pediu a anulação da sentença ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. E conseguiu! De novo, a segunda instância da justiça gaúcha ignorou a Constituição e a vulnerabilidade dos menores de 14 anos.
A alegação foi que mesmo que a mãe não concordasse com o namoro e não aceitasse que a filha fizesse sexo com aquela idade, a menina quis e assumiu isso em juízo (embora o Ministério Público informe nos autos que "a vítima teria falado para a Conselheira Tutelar que o adolescente a convenceu a manter relações sexuais").
Na sentença de absolvição do rapaz, anulando a pena de prestação de serviços imposta antes, o relator da ação escreveu que, além de ser consensual, "houve afeto".
Vejam o raciocínio. Ele disse que o adolescente de 17 anos não teve a vontade livre e deliberada de cometer um delito contra a namorada, de 12 anos, não agiu com dolo. Nas palavras do desembargador “tratou-se de uma verdadeira troca de afeto entre o casal."
O juiz disse ainda que "aqui, como no exemplo clássico, tem-se que ambos vivenciaram uma fase de descoberta da sexualidade. Assim, a incriminação fere, no mínimo, o bom senso. Por isso, possível pensar-se na aplicação do princípio da ação socialmente adequada, em face das peculiaridades próprias do costume e da forma com viviam as partes.”
O bom senso a que se refere é que cada um sabe a hora de deixar aflorar sua sexualidade, o que é uma generalização perigosa. Será que meninas de 12 anos sabem mesmo que esta é a hora certa para deixar aflorar sua sexualidade? Ou estão vivendo uma fantasia, se sentindo num conto de fadas e não têm capacidade de pensar no que uma escolha errada pode trazer de sequelas psicológicas no futuro?
Será que rapazes de 17 não veem a diferença de amadurecimento no corpo e na cabeça de quem mal saiu da infância (ou ainda está nela) e daqueles que já estão batendo na porta da vida adulta?
Não precisamos aceitar
Os dois casos estão descritos em reportagens da revista Consultor Jurídico e podem ser lidos com mais detalhes por quem se interessar. Não à toa o primeiro comentário na matéria do ConJur para esse caso foi de um advogado, falando sobre o rapaz que foi absolvido.
"Então tinha 17. Sei não, mas não tá certo. Se valeu da atração que adolescentes impúberes sentem por rapazes mais velhos. O consentimento dela não foi livre. Se ele tivesse 14 ou no máximo 15, vá lá. A intenção da lei, creio, seja, também, punir esse aproveitamento de um jovem quase adulto para com a fantasia de uma criança ou adolescente impúbere."
João Afonso Corrêa, advogado, em comentário na revista Consultor Jurídico
Na reportagem sobre o caso do homem de 23 anos absolvido da acusação de estupro de vulnerável por namorar e fazer sexo com uma menina de 13, outro advogado se manifestou de forma anônima, mas indignada.
"Para a relatora, não se está diante de um caso de abuso, mas de precocidade sexual. Por esta perspectiva, seria hipocrisia condenar o réu num cenário em que a mídia — novelas, filmes, seriados e outros programas de televisão — estimulam, cada vez mais cedo, a sexualidade das meninas. Segue a depravação da sociedade brasileira pela televisão."
Comentário de leitor que se identifica apenas como Advogado Autônomo - Civil, na resista Consultor Jurídico
É bem preocupante quando a sociedade, já massacrada pela indústria da moda e do entretenimento, que impõem a erotização de crianças e a experimentação precoce da sexualidade por adolescentes recém-saídos da infância, vê a Justiça se render a essa pressão da mídia e, ainda por cima, ignorar a Constituição.
Onde vamos parar se todo mundo decidir que não precisa mais respeitar o sinal vermelho, porque cabe a cada um avaliar se é perigoso ou não avançar? Deixe sua opinião. Menores de 14 anos devem ou não ser considerados vulneráveis quando submetidos a sexo com adultos ou adolescentes a um passo de se tornar maiores de idade? E a Constituição, serve pra que, afinal?
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