Quem me acompanha viu a live que fiz na segunda-feira (26) com a estudante Elisa Flemer, de Sorocaba (SP), uma jovem que optou pelo ensino domiciliar, conhecido pelo termo em inglês homeschooling, estudou em casa durante todo o Ensino Médio, passou em 5º lugar no vestibular de Engenharia Civil da USP, mas não conseguiu se matricular nem apelando à Justiça.

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A notícia saiu em vários jornais, inclusive aqui na Gazeta do Povo. Circulou também nas redes sociais e trouxe de volta o assunto que estava adormecido, mas merece reflexão.

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Estudar em casa é uma opção aceita no mundo inteiro, especialmente em países desenvolvidos, desde que seguidas algumas regras pré-estabelecidas. O Brasil segue de olhos fechados para o tema, como se não interessasse a ninguém ou fosse um capricho de gente obscura, que não valoriza a Educação formal.

Com isso ignora milhares de famílias que já optaram ou pretendem optar pelo ensino em casa, seja por não concordarem com os rumos que a Educação brasileira tomou ou por motivos de adaptação às necessidades do estudante ou dos pais.

Embora o STF já tenha julgado o homeschooling constitucional, não há uma lei federal ditando as normas para que universidades aceitem estudantes sem histórico escolar reconhecido. Vários projetos de lei já foram apresentados no Congresso, mas estão esquecidos em alguma gaveta.

Enquanto isso jovens esforçados, brilhantes até, acabam sendo punidos pela lentidão dos políticos em votar leis e pela cultura brasileira de não se reconhecer o mérito das pessoas. Decidi aproveitar esse caso recente para aprofundar uma discussão que já deveria ter sido feita por deputados e senadores.

Estudante punida por querer aprender mais

A estudante Elisa Flemer, de Sorocaba, fez o Ensino Médio sozinha em casa, de 2018 a 2020. Obviamente, ela não tem o diploma e o histórico escolar exigidos no ato de matrícula das universidades, por isso não conseguiu garantir a vaga que conquistou em março de 2021: o 5º lugar em Engenharia Civil na USP.

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Recorreu à Justiça, mas a juíza que analisou o caso negou o pedido, dizendo que ela não conseguiu provar ter “altas habilidades e maturidade para o Ensino Superior”. Isso mesmo tendo feito o Enem e tirado uma nota excelente, a ponto de ter sido aprovada (e bem aprovada) no vestibular da USP, um dos mais concorridos do país.

Quanto à maturidade... Como questionar se alguém de 17 anos tem condições de frequentar o ambiente universitário, uma vez que a imensa maioria dos jovens começa a faculdade com idade igual ou próxima à dela? Elisa não ficou em casa à toa nos três anos do Ensino Médio. Ela efetivamente estudou por três anos e prestou vestibular no tempo certo.

No nosso bate-papo ao vivo, em vídeo, é possível ver o nível de maturidade da estudante. Sugiro que assista, caso não tenha visto, e tire suas próprias conclusões.

Liberdades individuais e qualidade do ensino

Algumas peculiaridades desse caso me fazem insistir no tema. São questões pertinentes a todos que prezam pelas liberdades individuais, inclusive a liberdade de pais decidirem o que é melhor para seus filhos. E pertinentes também aos que se interessam por pensar formas de melhorar o ensino no Brasil.

Não é de hoje que se veem casos de estudantes desestimulados pelo ensino tradicional. Quem tem adolescente na família sabe bem do que estou falando.

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Aos que não têm, basta imaginar um jovem que nasceu na era digital e está acostumado a ter o mundo ao alcance de um clique, vendo-se preso a uma carteira escolar, olhando para um quadro negro, cinco horas por dia, em intermináveis exposições pouco atrativas.

A discussão aqui não é sobre conteúdos ou a necessidade do estudo ou da escola. É sobre o fato de que, do jeito que é na maioria dos lugares, o ensino tradicional está fazendo com que muitos estudantes se sintam desestimulados a continuar na escola.

Muitas vezes isso significa afastar crianças que gostam de aprender, só não gostam do jeito que se ensina.

Alunos especiais

Elisa Flemer conta que desde pequena sempre foi muito estudiosa, tirava boas notas, era daquelas alunas que todo professor adora. No fim do Ensino Fundamental, já adolescente, começou a achar as aulas muito chatas, arrastadas. Poderia ser mera birra de adolescente, mas não parece o caso.

Ela lia muito, queria aprender mais e mais, tinha ânsia por conhecimento. Tanto é verdade que correu atrás de bolsas de estudo em escolas particulares, achando que o ensino seria mais puxado e mais desafiador. E até conseguiu as bolsas. Experimentou quatro colégios, mas não se adaptou a nenhum método de ensino.

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Foi então que convenceu os pais de que seria melhor estudar por contra própria e acabou fazendo o Ensino Médio inteiro em casa. Pesquisou conteúdos do currículo escolar brasileiro, acompanhou aulas online, fez exercícios e provas simuladas do Enem, até que prestou vestibular, passou e entrou na batalha por ter reconhecido o direito de fazer faculdade.

O primeiro ponto que merece destaque aqui é que este é um caso bem específico, de uma estudante acima da média, que dá conta de estudar sozinha, porque tem curiosidade, gosta da rotina de pesquisas e faz isso com prazer, sem supervisão. Não é o caso da maioria.

A experiência da pandemia tem mostrado o quanto ainda estamos longe de ter um ensino a distância eficiente, abrangente e aprovado pela maioria dos estudantes.

Não são poucos os relatos de dificuldades de alunos para estudar em casa e também dos pais para atender os filhos. Definitivamente não dá para dizer que o homeschooling é o melhor método para todos. É um possível método para alguns estudantes.

A questão é por que não permitir que alunos excepcionais direcionem seu próprio aprendizado, como fez a Elisa? Ou que pais, dispostos a fazer o papel de professores dos filhos, seja por qual motivo for, possam assumir também essa função?

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Regulamentação do homeschooling

É claro que não se pode permitir o ensino domiciliar abertamente, sem regras, sob pena de ceifar o futuro de crianças cujos pais não têm responsabilidade nem disciplina para prestar o serviço que a escola presta.

Entre as regras adotadas em países que já regulamentaram o homeschooling estão a obrigatoriedade de seguir o currículo escolar oficial, de submeter o estudante a avaliações periódicas, a exigência para que a família receba acompanhamento pedagógico com certa regularidade e seja monitorada quanto ao risco de abandono intelectual dos filhos.

São essas regras que precisam ser definidas pelo Congresso Nacional. Reforço que o STF já disse isso quando julgou que o homeschooling não é inconstitucional, mas precisa ser regulamentado por lei. Como mencionei acima, já existem vários projetos de lei apresentados. Falta disposição dos nossos deputados e senadores para se debruçar sobre essa questão.

Preconceito e ideologia

Esse é um daqueles temas que decidiram chamar de pauta de costumes. Jogaram um preconceito gigantesco em cima do homeschooling e fingem que não é urgente, apenas uma obsessão do que chamam de “um governo ideológico”.

É preciso ficar claro que todos os governos são ideológicos. Os governantes são eleitos por causa das propostas que apresentam e da pauta que defendem. Quem elegeu o atual governo queria, entre outras, que essa discussão fosse adiante. Isso precisa ser respeitado.

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Tanto isso interessa a uma parcela da população que existe uma Associação Nacional de Educação Domiciliar. A ANED fez um levantamento em 2019 e descobriu que havia mais de 18 mil crianças e adolescentes estudando em casa no Brasil.

É pouco perto dos 2,5 milhões de americanos que fazem homeschooling, mas lá o assunto está consolidado faz tempo, por isso é tão comum. E aqui? Vamos deixar os nossos 18 mil estudantes domiciliares no limbo?

Quando terminarem o Ensino Médio e quiserem seguir para o Superior, mesmo sendo aprovados em vestibular, como aconteceu com a Elisa, não vamos permitir que sigam estudando, que aprendam uma carreira, que possam virar profissionais em alguma área e entrar para o mercado de trabalho?

Vamos punir uma parcela da população que optou por um método de estudo diferente, que julgou ser mais conveniente que os filhos estudassem em casa? Punir jovens que estudaram de fato, ainda que não pelas vias tradicionais, não me parece a opção mais inteligente, muito menos justa.

A escola do século XXI

Outra questão importante que surge quando a gente vê uma aluna brilhante revelando que desistiu da escola, porque as aulas eram muito chatas é a necessidade urgente de modernizar a forma de ensinar.

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Em pleno século XXI, com tecnologia avançada e a facilidade de acesso à informação, não dá mais para ficar achando que sala de aula com professor e quadro negro é o único jeito de aprender.

Mesmo o ensino à distância precisa se modernizar, como constatou a estudante de Sorocaba com a experiência do homeschooling. O ensino remoto ruim da pandemia não é culpa dos professores. Eles não foram treinados para isso, tiveram que se adaptar às pressas.

Fizeram o melhor que puderam, mas a insatisfação generalizada deixa claro que para o ensino à distância ser eficiente é preciso repensar os métodos de passar conhecimento, treinar os professores, melhorar a estrutura de gravação de aulas.

A própria Elisa, que tem facilidade para aprender, diz que sofreu durante semanas até achar o melhor jeito de estudar. Para ela foram as aulas de cursinhos preparatórios para vestibular, em que os professores são objetivos, vão direto ao ponto, a filmagem é bem feita, mostrando um quadro onde tudo está escrito de forma clara.

O aluno precisa de tempo cronometrado para resolver as questões e outros momentos para interagir com o professor e tirar dúvidas. Isso sem falar nas indicações de leitura, nas sugestões de pesquisa e de filmes para assistir.

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País perde talentos

É um desperdício de talentos para o país impedir que uma estudante como a Elisa se matricule numa faculdade. O 5º lugar em Engenharia Civil na USP não foi o primeiro bom resultado dela.

Em 2020, antes da pandemia, a jovem já tinha sido aprovada em primeiro lugar numa faculdade de Engenharia Elétrica na cidade onde mora, Sorocaba. Estava com 16 anos e também não conseguiu se matricular nem mesmo apelando à Justiça.

No Brasil há vários casos de alunos considerados superdotados que prestam vestibular antes de terminar o Ensino Médio e conseguem autorização judicial para frequentar a faculdade. Isso aos 16 anos, 15, às vezes até antes.

É preciso, porém, ter um laudo, normalmente elaborado por psicólogos e pedagogos, atestando as tais “altas habilidades e maturidade” a que a juíza se referiu na sentença em que negou o pedido da estudante. E aí vem outro ponto para reflexão.

O cruel nessa história específica é que só depois de passar no vestibular na primeira vez e não conseguir fazer matrícula é que a Elisa foi informada da possibilidade de ser avaliada e conseguir esse laudo.

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Se há alunos, bons alunos, que não se adaptam à escola tradicional, por que as próprias escolas não são orientadas a encaminhar esses alunos para uma avaliação? Seria a chance de testá-los em suas habilidades e dar instruções sobre a melhor forma de seguir os estudos, com acompanhamento especial.

Falam tanto de inclusão, incluem quem tem alguma deficiência, o que é correto, mas excluem quem tem altas habilidades para aprender.

No caso em questão, a estudante é exemplar, gosta de estudar, queria aprender mais. E tentou fazer isso, insistiu muito, passou por quatro escolas, só que não deu certo.

Estava desencantada pela instituição “escola”, desestimulada pelas aulas. Em casa conseguiu dar vazão a esse desejo intenso de estudar, fez inglês, tirou nota máxima no Toefl, o difícil exame de proficiência em inglês exigido de quem vai estudar no exterior.

E ela ainda fez uma prova equivalente ao Enem nos EUA, também com resultado excelente. A intenção era, eventualmente, estudar numa universidade americana.

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Se tivesse dinheiro para pagar faculdade lá teria ido, porque as universidades nos EUA olham as notas dos alunos no processo de admissão. E brigam para ter os melhores alunos.

Não duvido que depois da repercussão da história apareça alguma instituição querendo bancar os estudos dela no exterior. Terá sido mais caso de talento brasileiro dado de presente para outro país.

Quem garante que uma estudante dessas, impedida de cursar uma faculdade, não venha a ser uma cientista, uma astronauta ou uma grande empresária, que gere vários empregos, crie produtos para facilitar a vida das pessoas?

Depois de conhecer uma história dessas a gente entende por que o Brasil não se destaca mais nas Ciências, não registra grandes descobertas toda hora, tem poucos líderes. Não é só porque a Educação formal é ruim. Estamos perdendo talentos, porque o sistema educacional nivela por baixo.

Uma estudante como a Elisa, se consegue bolsa para estudar no exterior, normalmente fica por lá, não volta a morar no Brasil. Vai ser uma profissional disputada depois que se formar.

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Que empresa não quer ter no seu quadro um funcionário bem preparado, que está sempre estudando, buscando mais conhecimento? Essas pessoas costumam ter maior inteligência emocional e produzir mais.

Ensino domiciliar pelo mundo e no Brasil

Na lista de países que permitem o homeschooling estão Estados Unidos, Canadá, vários da Europa (França, Itália, Reino Unido, Suíça, Portugal, Holanda, Bélgica, Áustria, Finlândia e Noruega).

Entre os países do BRICs tem Rússia e a África do Sul. O ensino domiciliar também é aceito nas Filipinas, no Japão, Austrália e Nova Zelândia. Na América Latina, é regulamentado na Colômbia, no Chile, Equador e Paraguai.

Aqui no Brasil, enquanto essa questão não é resolvida no Congresso, vão surgindo leis regionais para permitir o homeschooling. Distrito Federal já aprovou, bem como as Câmaras Municipais de Salvador (BA), Vitória (ES) e Cascavel (PR).

Nas Assembleias Legislativas dos três estados do sul e também de São Paulo já existem projetos para regulamentar o ensino domiciliar em nível estadual. E a Câmara Municipal de Curitiba também já tem projeto de lei em tramitação.

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Os autores desses projetos de lei dizem que não estão pregando que a escola seja desnecessária. Querem apenas que as famílias tenham autonomia para decidir o que é melhor para seus filhos.

Para finalizar insisto a quem não assistiu que veja a live em que conversei com a Elisa Flemer. Entre tantas outras informações ela rebate uma das principais críticas de quem se diz contra o homeschooling, alegando que criança longe da escola não socializa.

Durante a live surgiram comentários nas redes sociais até de professores contestando isso, alegando que há casos positivos de socialização nas escolas, sim, mas também muitos casos negativos.

Quanto à Elisa, é incrível como a garota considerada nerd, que chegou a ser avaliada como autista, conseguiu desenvolver amizades após decidir estudar em casa e viver o isolamento dos colegas na prática.

Dar liberdade ao estudante e às famílias e reconhecer o mérito de quem se esforça não é desprezar quem tem menos capacidade. É estimular para que todos busquem o seu melhor, porque exemplos assim inspiram. Nivelar por baixo definitivamente não faz ninguém evoluir.

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