Você não leu errado o título. Por decisão do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, ele e os outros 10 ministros iniciaram nesta sexta-feira (24), de forma virtual, uma ação que pede a liberação do aborto para gestantes que contraírem zika vírus, independentemente de confirmação de que o bebê venha a ter problemas, o que não é possível saber no estágio inicial da gestação.
Foi uma decisão repentina, inesperada, não agendada. Já já vou falar do oportunismo do presidente do STF de trazer essa pauta à tona agora. Primeiro é importante frisar que, num estalar de dedos, Toffoli decidiu que, sim, esta era a melhor hora para a corte máxima da justiça brasileira decidir se mães podem impedir que seus filhos nasçam simplesmente por achar que eles podem vir ter algum problema. Eugenia? Não quero entrar nessa discussão agora. Mas é preciso discutir a defesa da vida, ainda que de forma breve.
Defesa da vida
Falar de proibir aborto é sempre polêmico e não deveria ser. Estamos falando do direito à vida, de garantir esse direito ao mais frágil dos seres, aquele que, por ainda não ter nascido, não pode se manifestar. Não é o direito de mulheres decidirem sobre o que fazer com seu próprio corpo e sua própria vida que está em discussão. É o direito de uma mulher ser autorizada a matar outra pessoa.
Se você concorda que ser humano nenhum tem o direito de matar outro ser humano, seja por qual razão for, nem mesmo por punição ou vingança a quem comete crimes hediondos, por que deveríamos achar que uma mãe possa ter o direito de matar seu próprio filho? E um inocente, que nada fez contra ninguém?
Não adianta vir com aquele discurso de que até a semana tal da gestação o embrião ainda não tem tal e tal órgão, o que caracterizaria que ele não tem vida. O melhor argumento que já ouvi para rebater essa bobagem foi o do pediatra e geneticista francês Jérôme Lejeune, o descobridor da causa da síndrome de Down e que está citado no capítulo sobre defesa da vida que está publicado na página das convicções da Gazeta do Povo. O que diz esse médico cientista?
“Se um óvulo fecundado não é por si só um ser humano, ele não poderia tornar-se um, pois nada é acrescentado a ele”.
Jérôme Lejeune, cientista francês descobridor da causa da síndrome de Down
Lejeune defende que não existe nenhum “momento definidor”, dentro da barriga da mãe, em que um “não humano” passa para o estágio de “ser humano”. Se nada é acrescentado ao óvulo fecundado pelo espermatozoide, como se pode dizer que ali não há vida? Ela só precisa se desenvolver para ter condições de nascer. Todos nós já fomos essa primeira célula e só estamos aqui hoje, eu escrevendo e você lendo, porque a gestação foi em frente.
Oportunismo de Toffoli
Como eu disse na introdução desse artigo, não quero analisar aqui a questão do aborto em si, e sim o oportunismo do presidente do STF de colocar esse tema em pauta para votação no meio de uma pandemia, quando a ordem é de isolamento social. Como as aglomerações estão proibidas, fica difícil para os grupos que defendem a vida irem a Brasília e fazer manifestações lá na porta do STF, gritar, fazer barulho para, quem sabe, levar os ministros a entenderem que essa é uma questão para ser amplamente debatida e não decidida a portas fechadas, cada um trancado na proteção do seu lar.
Em que ganha a sociedade quando nossa corte máxima decide discutir agora, sem margem a contestações, um assunto delicado como a autorização para gestantes que contraírem zika vírus abortarem seus bebês? E tem um detalhe sórdido aqui: o presidente do STF, Dias Toffoli, pautou essa votação dias depois de o presidente Bolsonaro ter sancionado a lei (MPV 894/2019) que garante o pagamento de pensão mensal vitalícia de um salário mínimo a crianças com microcefalia causada pelo zika vírus.
Essa lei foi aprovada justamente para dar segurança às gestantes que contraírem o vírus. A partir de agora se o bebê dessas mulheres tiver problemas, o que não é certeza já que acontece apenas com uma parte deles, terá como ser sustentado para o resto da vida. Este era, aliás, um dos pedidos feitos pela Associação Nacional de Defensores Públicos, autora da ação pautada para julgamento hoje no STF.
A Associação Nacional dos Defensores Públicos alega que mulheres infectadas pelo zika vírus durante a gestação precisam ter a liberdade e a dignidade humana de abortar. Liberdade para matar? Dignidade humana para decidir? Os nobres defensores públicos que redigiram esta ação não pensaram na dignidade humana do feto, mas tudo bem, é para acreditarmos que defendem à sociedade como um todo.
É bom ficar claro que vários defensores públicos já se pronunciaram lamentando essa ação movida pela associação de classe, lamentando que uma associação de profissionais que têm como função a defesa dos necessitados, pudesse prestar esse desfavor ao mais vulnerável de todos os seres humanos: o ser humano ainda em estágio embrionário. Outro comentário que eu li numa rede social, não sei se escrito por um defensor público indignado ou por outro cidadão que se preza a defender quem não tem voz.
"Pergunta para os magistrados se eles vão pedir a opinião das crianças abortadas? Quem vai ouvir essas crianças? Esses que sempre querem discutir aborto ouvem muitas vozes, menos as daquelas que nunca puderam ter a chance de existir."
Cidadão comum que prefere não se identificar, numa rede social
Mas voltando ao oportunismo do presidente do STF... Essa mesma ação que ele decidiu julgar agora já foi incluída na pauta do tribunal duas vezes no ano passado e retirada por pressão de grupos de defesa da vida.
Agora o tema entrou na pauta do tribunal de repente. Não constava na agenda do primeiro semestre de 2020, divulgada pelo próprio ministro Dias Toffoli no fim do ano passado. Então é de se perguntar sim: por que agora? Que interesse tem o Dias Toffoli nisso? Ideologia de quem ele está defendendo?
E aqui eu queria destacar a opinião de um professor doutor em Direito pela USP. Ouvido pela reportagem da Gazeta do Povo recentemente Antonio Jorge Pereira Júnior disse que o que chamou a atenção, no caso desta ação, "não foi nem tanto o objeto dela, mas, de certa forma, o aproveitamento do contexto de uma pandemia, em que está todo o mundo isolado, sem poder se manifestar."
"Pelo nível de interesse público que a ação envolve, ela deveria ser julgada num contexto em que as pessoas, entidades e autoridades tivessem mais liberdade para se manifestar e tomar atitudes em relação ao julgamento. Parece estratégia para inibir, de certa forma, uma reação.”
Antonio Jorge Pereira Júnior, doutor em Direito pela USP
Vamos ver o que suas excelências decidem diante do silêncio imposto à sociedade. É incrível que 11 pessoas que não foram escolhidas diretamente pelo povo, e que não tem o dever de criar leis, estejam fazendo isso: legislando e decidindo por nós, sem sequer serem nossos representantes diretos. Ah! E decidindo também por quem não está aqui para pedir socorro, mas no útero de uma mulher doente e nesse momento amedrontada por duas ameaças: o zika vírus e o coronavírus, que também são ameaças ao feto.