Kassio Nunes Marques continua dando o que falar, por um único motivo: há mesmo muito o que falar. E esse é o momento de falar, afinal o presidente Bolsonaro diz que está seguro de que escolheu um bom nome para o STF (e que não volta atrás), mas o país quer entender o porquê da escolha. É importante que todos saibam o que pensa e como age esse desembargador, até porque ele ainda vai passar por uma sabatina no Senado, como manda a lei. E podemos cobrar dos senadores que ao menos façam as perguntas que nós queremos ver respondidas.
Não foi à toa a enxurrada de críticas ao nome escolhido pelo presidente. De cara desagradou o fato de ele ser ligado a políticos do Centrão e de ser mais um que não é juiz de carreira. Kassio Nunes Marques não fez concurso para entrar para a magistratura. Virou desembargador de uma corte superior de Justiça por indicação da ex-presidente Dilma Rousseff, através do chamado quinto constitucional, que garante a presença de advogados e membros do Ministério Público entre os juízes de tribunais de Justiça.
Foi por causa dela que esse advogado do Piauí assumiu uma vaga no TRF1 – o Tribunal Regional Federal da 1ª região, que tem sede em Brasília e analisa processos do Distrito Federal, de alguns estados do Centro-Oeste, da Bahia e do Maranhão, no Nordeste, e de todos os estados do Norte do país. E a possível gratidão ao PT de Dilma Rousseff pela promoção também gerou apreensão.
Decisões de Kassio Nunes Marques no TRF1
Na segunda leva de críticas apontaram algumas decisões de Kassio Nunes Marques como juiz no TRF1, como aquela das lagostas, em que ele derrubou a determinação de uma juíza de 1ª instância de proibindo a compra de lagostas e bebidas caras para os banquetes do STF.
Ao julgar o caso, em maio do ano passado, o desembargador considerou que a licitação não seria "lesiva à moralidade administrativa" e argumentou que as lagostas e os vinhos caros que o STF queria comprar não eram para as refeições rotineiras dos ministros, mas para serem servidas em eventos realizados pelo tribunal com a presença de autoridades nacionais e estrangeiras em que “a própria dignidade da Instituição, obviamente, é exposta”.
Isso é algo que a imensa maioria dos brasileiros, os pagadores dos impostos que bancam esses luxos todos, não aceita. E não é "só" porque não tem as mesmas iguarias na própria mesa, mas também por saber que em momentos de aperto não se faz festa cara com cardápio de luxo. E todos sabem que desde 2014 o país está em profunda recessão.
Mas digamos que a opção fosse por deixar isso de lado e creditar a decisão ao corporativismo do Judiciário, às excelências acostumadas aos palácios de mármore e a privilégios de todo tipo. Podíamos até engolir em seco e desconsiderar o repúdio a outra decisão de Kassio Nunes Marques no passado recente: a de manter o terrorista italiano Cesare Batisti no Brasil. Por incrível que pareça, há preocupações maiores do que essas.
Antes de falar de outros pontos, porém, faço um parênteses aqui, porque acho importante destacar os detalhes que vieram à tona depois da divulgação de que foi ele, desembargador Kassio Nunes Marques, o responsável pela permanência do terrorista italiano no Brasil por tanto tempo. Não foi. Justiça seja feita.
Cesare Batisti só recebeu asilo no Brasil, por ordem do então presidente Lula, apoiado por decisão do STF, que considerou como ponto passivo que era do presidente da República o poder de decisão nesse caso. Como juiz do TRF1, Kassio Nunes Marques julgou um processo de apelação que questionava a decisão de Lula, pedindo que o terrorista fosse deportado. E negou o recurso, dizendo que a decisão era mesmo do presidente, porque isso já tinha sido julgado numa corte superior, o STF. Então, acho plausível dar um desconto também nesse caso.
Pauta conservadora: de transparência a aborto
Agora vêm as questões mais preocupantes: Kassio Nunes Marques é realmente alguém alinhado com a pauta conservadora como prometeu o presidente Bolsonaro ainda na campanha, ao dizer que buscaria indicar para o STF nomes que equilibrassem as votações lá, quase sempre pendentes para um lado só? Ou é mais um que vai chegar ao Supremo e virar as costas para valores tão importantes para os brasileiros como a defesa da vida, do casamento, da família, da propriedade, do trabalho honesto, da punição a criminosos, do fim aos privilégios?
Verdade e transparência são valores que todo mundo preza ou deveria prezar. E os questionamentos sobre a veracidade do currículo de Kassio Nunes Marques não pontuam a seu favor. Como o Brasil viveu recentemente o caso do professor Carlos Decotelli, aquele outro indicado do presidente Bolsonaro (para o Ministério da Educação), que nem assumiu por ter mencionado que era doutor sem ter apresentado tese e garantido o título, foram olhar o currículo do indicado para o STF.
Um professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), prof. Joaquim Falcão, em entrevista à Globo News, destacou que o doutorado de Kassio Nunes Marques na Universidade de Salamanca na Espanha, que consta no currículo divulgado pelo site do TRF1, foi obtido agora no fim de setembro, poucos dias antes da indicação do nome dele para o STF.
Esse professor, então, questiona os dois pós-doutorados informados no currículo, um supostamente obtido na mesma Universidade de Salamanca onde ele fez o doutorado e outro, na Universidade de Messina, no sul da Itália. O questionamento do professor é pertinente: como pode alguém que acabou de obter o título de doutor, já ter terminado dois pós-doutorados em poucos dias?
Parece uma coisa menor, mas não é. Se foi um erro, isso precisa ser esclarecido o quanto antes (e ainda não foi). As explicações do desembargador podem ajudar a saber o quanto ele é apegado à verdade. Por enquanto o que surgiu foram esclarecimentos por parte de duas das universidades estrangeiras onde ele diz ter estudado.
Procurada pelo jornal O Globo a Universidade de Messina informou que o curso que Kassio Nunes Marques fez lá não foi pós-doutorado. Ele apenas participou de um ciclo de seminários, que não corresponde a nenhum grau acadêmico.
Outra universidade espanhola citada no currículo, Universidade de La Coruña, onde ele teria feito um curso de pós-graduação esclareceu que também não é pós-graduação o que ele fez e sim "curso de extensão, com duração de cinco dias e carga horária de 40 horas."
Outra dúvida que envolve uma questão moral de extrema importância foi levantada pela deputada Janaína Paschoal. Ela leu a dissertação de mestrado do desembargador Kássio Nunes Marques, sobre a Concretização Judicial do Direito à Saúde. Elogiou o trabalho, apresentado em Lisboa, disse que tem qualidade técnica e valor acadêmico, mas destacou como preocupantes algumas citações que ele faz.
“No Capítulo que trata da Divisão Funcional dos Poderes do Estado, o candidato, citando Dworkin, diz que o Judiciário pode ser acionado para fazer frente à maioria conservadora. Ilustra com o caso do aborto (página 24). Mais adiante, no Capítulo que trata dos Custos do Direito à Saúde, o magistrado traz como exemplo justamente o caso Roe v. Wade, aduzindo que o direito ao aborto foi garantido nos EUA, mas somente depois tomaram o cuidado de debater de onde sairiam os recursos (página 42)", diz Janaína em uma postagem no Facebook.
A deputada reconhece que, nesses dois trechos do trabalho o desembargador refere-se a outros autores, mas aponta como intrigante o fato de ele tratar de aborto em um trabalho sobre o direito à saúde, reproduzindo um pensamento progressista recorrente: o de que o abroto é uma mera questão de saúde feminina ou um direito reprodutivo da mulher, sem considerar que há em jogo a vida de um ser absolutamente frágil e sem voz.
A deputada ainda destaca que, como estudou na USP, universidade dominada pelo pensamento progressista, conhece bem essa linha de raciocínio defendida até por muitos juristas respeitáveis. Mas faz questão de frisar que não esperava encontrar esse posicionamento em um jurista indicado por um Presidente eleito como conservador.
“Seria importante saber o que, afinal, Dr. Kassio Nunes Marques pensa sobre o tema [aborto]. Como pondera a liberdade da mulher e o direito de um outro ser humano nascer.”
Janaína Paschoal, professora de Direito Penal e deputada estadual em São Paulo
Janaína Paschoal lembra que está em tramitação no STF, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber, uma ação do PSOL (ADPF 442) que pede a legalização do aborto. Pela proposta ele passaria a ser ofertado, de maneira ampla e irrestrita, pelo SUS. A própria deputada, que é conservadora, já esteve numa audiência pública sobre o tema no STF para defender a lei atual, que proíbe o aborto, apenas tolera em algumas situações bem específicas.
Como a esmagadora maioria dos eleitores de Bolsonaro (quase 58 milhões, nunca é demais lembrar), a deputada é contrária à legalização do aborto, defendida pelo PSOL e demais partidos da esquerda radical. Por isso Janaína Paschoal faz uma observação mais contundente: essa maioria que é contra o aborto é “Justamente a maioria "conservadora", que o Judiciário não deve ouvir”, nas palavras de Dworkin, o autor citado pelo desembargador Kassio Nunes Marques na dissertação de mestrado.
“Como Professora da USP, estou acostumada a avaliar teses com as quais não concordo, totalmente ou em parte. Jamais deixei de reconhecer a seriedade de um trabalho em razão de divergências. Reitero que o Mestrado [de Kassio Nunes Marques] tem qualidade de Doutoramento. Não obstante, não estamos falando da atribuição de um título. Estamos falando da aprovação de alguém para decidir os rumos do país nas próximas décadas", escreveu a deputada em sua conta no Facebook.
"Os eleitores de Bolsonaro não votaram nele para ter decisões típicas de um governo Haddad. O Direito à vida, ou o direito a nascer, foi um dos pilares que elegeu Bolsonaro. Temos o direito de saber o que o indicado ao STF pensa sobre o tema.”
Janaína Paschoal, professora de Direito Penal e deputada estadual em São Paulo
O presidente Jair Bolsonaro, também através de redes sociais, disse que o desembargador Kassio Nunes Marques está "100% alinhado" com ele, é contra o aborto e votará contra o pedido do PSOL caso seja pautado no STF.
E ainda disse que ele é a favor das armas, nos limites da lei, que defende a família e as pautas econômicas. “Quem duvida que aguarde as votações”, disse o presidente no Twitter, enfatizando que a indicação dele para o STF é "completamente sem volta". Então, o que nos resta é continuarmos atentos às informações que surgem e de olho nos senadores na hora da sabatina, marcada para o dia 21 de outubro.
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