O assunto epidemia, que depois virou pandemia, passou incólume por esta coluna durante três semanas. Eu vinha evitando o tema para dar um respiro ao leitor, já tão bombardeado pelas informações sobre coronavírus. Mas a experiência inédita de uma quarentena sendo vivida por quase toda a humanidade ao mesmo tempo é motivo forte o suficiente para eu me render.
Como há oito dias escrevo de casa e agora começo a também gravar vídeos aqui, achei oportuno dividir com leitores e espectadores uma das muitas percepções que o isolamento social me trouxe. Direciono meu foco para um único aspecto, apenas um entre tantos outros que mereceriam análise. É algo que andava meio esquecido, pouco comentado em textos, vídeos e até nas nossas conversas do dia a dia e que estamos agora reencontrando dentro de nossas casas em função do isolamento social.
O valor da família
A estratégia de ficarmos todos em casa como forma de atrasar o contágio, que é inevitável, e assim não sobrecarregar os hospitais, pode não ter ficado clara ainda como a melhor das medidas, mas fez efeito imediato na saúde das relações humanas no núcleo mais íntimo.
Com exceção daquelas famílias já desestruturadas pela violência doméstica e pelo desrespeito, algo que, infelizmente, acentua-se em situações de confinamento; os casais, pais e filhos, e os irmãos estão diante de uma chance única de redescobrir o prazer de estar juntos e a sós. É a oportunidade de estreitar laços que andavam meio frouxos, ofuscados pelas distrações e ocupações da agitada rotina fora de casa e do contato virtual quase obsessivo com gente que vive além das quatro paredes do lar.
O que me inspirou a gravar esse vídeo foi a foto que um ex- colega do curso de Jornalismo da UFPR, que hoje mora no Rio de Janeiro, postou no grupo de WhatsApp da turma. O registro mostra ele, a esposa e o casal de filhos em volta de uma mesa com um bolo. Era o aniversário da filha. No bolo, junto das velinhas, eles espetaram palitos colados a fotos de parentes e amigos que não podiam estar presentes. O casal teve o capricho de colocar na mesa alguns enfeites de festa e um arranjo de flores. Tudo simples e repleto de carinho.
Junto com a foto esse amigo enviou uma mensagem.
"Os 11 anos da minha filha foram comemorados com um festão para 4 pessoas presenciais e pro resto da família através de um Live no Facebook. Sobrou bolo, mas ela ficou muito feliz com tudo. Vida que segue."
E aí eu lembrei que dois dias antes uma amiga querida tinha feito aniversário e, no grupo dos amigos, em vez de mandar os parabéns por escrito e alguns emojis, como tantas vezes temos feito nos últimos anos, escrevi que era dia de ligar para a Lena. Tenho, aliás, resgatado o hábito de telefonar para as pessoas em vez de apenas mandar mensagem, algo que recomendo para aplacar a sensação de isolamento. E é outro efeito positivo na saúde das relações humanas.
Com o telefonema não apenas proporcionei alegria como fui presenteada com a notícia de que haveria festa por lá! Ela estava arrumando a mesa do bolo para celebrar o aniversário. Presencialmente estariam apenas o marido e o filho; mas irmã, cunhado e sobrinho participaram dos parabéns de outro bairro em Curitiba através de uma videochamada.
Na minha própria família houve algo parecido. Minha cunhada espanhola celebrou aniversário em Madri confinada em casa com o marido (meu irmão) e minhas três sobrinhas. Não participamos virtualmente da festa, porque aqui ainda não tinha começado a quarentena. Estávamos no trabalho na hora da festa e a diferença de fusos horários não permitiu.
Lá, porém, eles cantaram parabéns com pai, mãe, irmã, cunhado e sobrinhos conectados. Foi preciso dois celulares para que todos participassem da videochamada e cantassem "Feliz Cumpleaños" (veja vídeo abaixo).
E o mais divertido é que as meninas juntaram todas as velas que acharam na casa para, numa montagem aritmética, chegar à idade da mãe.
Outra amiga compartilhou foto de momento semelhante, tirada pelo marido. Ela mora nos EUA e tinha levado o pai, bastante idoso, para passar uns tempos lá muito antes de saber que uma pandemia estava a caminho e que os idosos precisariam de isolamento extremo. Por sorte conseguiu que o pai não estivesse sozinho, mas com ela, a filha, e os dois netos no dia em que completou 90 anos! Ao redor da mesa com bolo, brigadeiros e alguns enfeites, estavam presencialmente quatro pessoas de três gerações. Mas a pequena celebração foi acompanhada online por parentes em outro ponto dos EUA e aqui no Brasil. Inesquecível!
Meu comentário em vídeo, publicado no topo desta página, já estava gravado quando a foto dos EUA chegou para mim. E também quando outra amiga postou no Instagram um print da tela do celualr no dia em que ela, que estava com a filha em Chapecó (SC) se encontrou virtualmente com a mãe, em Penápolis (SP) e a irmã, em Santos. A emoção do momento foi descrita na postagem.
"Esperei e preparei tanto a homenagem aos 70 anos da minha mãe. Não seria um coronavírus que iria abalar o dia. Teve brinde virtual, teve banda da neta, genro tocando gaita, enfim, uma bagunça virtual das boas. Viva essa vida bem vivida minha mãe!"
Convicções reforçadas em tempos de quarentena
Tantos "festões" para pequenos núcleos familiares, mas sem esquecer de mostrar aos demais parentes que eles também são importantes, me fizeram recordar de uma das convicções da Gazeta do Povo, que também defendo: o valor da família. Copio abaixo trecho do que está na página das convicções do jornal, que você pode acessar na íntegra aqui.
"Cada pessoa é merecedora de um grande respeito apenas pelo fato de ser humana; mas em quantos lugares essa verdade é efetivamente colocada em prática? Não muitos, a julgar pela observação cotidiana. Mas existe, sim, um ambiente em que cada um é querido pelo que ele é, independentemente de sua utilidade ou de seus atributos. Esse ambiente é a família.”
E o texto segue: “O homem é um ser em formação; não vem pronto. E, ao mesmo tempo, é um ser social. Seu desenvolvimento exige a contribuição dos demais, e a principal estrutura básica de apoio é a unidade familiar, na qual cada um encontra o espaço adequado para seu aprimoramento. "
Para além das festas
O que eu percebi neste início de quarentena (e essa é uma percepção geral, não o que está acontecendo, necessariamente, em todas as casas) é que as pessoas rapidamente precisaram se organizaram nos horários e tarefas dentro de casa.
Foi preciso adaptar espaços para abrigar estações de trabalho, organizar cantos de estudo e de brincadeiras. Maridos e esposas, se não o faziam, finalmente dividiram as tarefas domésticas e também o atendimento aos filhos. As crianças estão sendo envolvidas em tudo e também tendo que dar sua cota de sacrifício em nome da preservação das boas relações com irmãos e pais.
Conciliar trabalho com a limpeza dos ambientes, o preparo das refeições, o atendimento aos filhos, é desafiador para os adultos. Estamos exercitando o ato de nos posicionarmos de maneira firme para que os filhos mantenham alguma rotina de estudo e leituras; que brinquem, ouçam música, assistam a desenhos e filmes, mas também arrumem as camas e ajudem a lavar a louça.
Para eles é a oportunidade de reconhecerem nos pais a autoridade, mas também a fonte primordial de amor, carinho e apoio. Por outro lado, aprender a lidar com a tentação de fazerem só o que gostam, tendo que aturar irmãos menores muito agitados, ou maiores que se acham donos do pedaço, é também uma chance de se aprimorar e avançar no processo de formação de caráter.
O confinamento em casa têm sido um enorme desafio para a maioria de nós, mas tem sido também uma grande oportunidade de darmos valor à família, reforçarmos nossos laços, discutirmos nossas diferenças e estabelecermos regras de convivência harmoniosa.
É ou não é um momento quase mágico se olharmos por esse aspecto? Mesmo quem mora sozinho está passando por um processo de introspeção e também de contato maior, ainda que virtual, com as pessoas que mais ama e que estão longe: pais, filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, tios, primos, avós. O núcleo familiar volta a ser olhado com atenção.
Pode observar o que aconteceu com você na última semana: tenho certeza que você contactou alguém que, na correria do dia a dia, estava sendo deixado para trás. Relações estão sendo resgatadas, boas lembranças estão vindo à tona, há carinho e atenção sendo compartilhados. Coisas maravilhosas estão acontecendo.
Num editorial recente, publicado na segunda-feira (23) com o título “Em casa sim, sozinhos nunca”, a Gazeta do Povo reforçou esse pensamento aproveitando a experiência que estamos tendo na quarentena com o nosso núcleo familiar mais próximo. Trago aqui o parágrafo final, para também encerrar a coluna de hoje.
"Quando a pandemia se for – porque, mais cedo ou mais tarde, ela vai passar –, que cidade, que país teremos? Que seja um mundo diferente, em que valorizemos muito mais cada momento da liberdade de estar com as pessoas queridas: aquelas com as quais dividimos o próprio teto, a rua, os interesses e afinidades. E que possamos lembrar destes dias como um tempo em que um fortíssimo sentimento de união nos ajudou a suportar o isolamento físico."
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