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Liberdades individuais desrespeitadas tem sido a marca deste primeiro ano de pandemia no Brasil. Semana após semana somos bombardeados por notícias de gente presa por ter cometido o "crime" de falar demais ou de sair de casa para trabalhar em serviços que o prefeito ou o governador não consideram essenciais.

Esta semana circulou na internet o vídeo chocante do comerciante de Ribeirão Preto (SP) preso por abrir a loja em meio ao lockdown. Caso não tenha visto acesse a versão deste artigo em vídeo clicando no play da imagem no topo da página.

No vídeo, o homem que ousou desfrutar da sua liberdade de ir e vir (e de trabalhar), filma e narra sua própria prisão no momento em que é conduzido por policiais até a viatura. Na sequência ele aparece já atrás das grades da delegacia de polícia em filmagem feita pelo filho, quando foi levar comida para o pai.

O comerciante Eduardo Cornélio aparece com as sacolas de marmita na mão, sem camisa, num cubículo de paredes descascadas, sem qualquer móvel, apenas com um buraco no chão para servir de privada. A fala é de causar revolta a qualquer ser humano honesto.

"Estou preso porque estava trabalhando, viu, Dudu? Meu filho, eu tava trabalhando. O pai tá aqui, porque tava trabalhando”

Eduardo Cornélio, comerciante de Ribeirão Preto (SP) preso por descumprir decreto de lockdown

Por sorte ainda há alguma sensatez nesse Brasil em que bandidos são libertados e gente honesta, que se cuida e cuida dos outros, respeita as regras sanitárias, mas precisa trabalhar, é presa. No dia seguinte à prisão um juiz determinou que o comerciante fosse solto. A decisão merece ser conhecida e discutida, porque traz uma argumentação sólida em defesa das liberdades individuais.

Escolho falar de liberdade aqui, inspirada neste caso específico, mas também por lembrar que não são só as liberdades de ir e vir, e de trabalhar, que vêm sendo atacadas. Também a liberdade de expressão virou alvo de autoridades que abusam do poder e ignoram a Constituição.

Isso sem falar na censura imposta pelas grandes empresas de tecnologia, que administram as redes sociais também ignorando as garantias fundamentais de todo brasileiro. E sem mencionar os patrulheiros e "canceladores", unidos em forma de milícias digitais sempre que querem destruir alguém com quem não concordam.

Este artigo é, ainda, um tributo à liberdade de viver e de ser feliz, mesmo em momentos difíceis como este que a humanidade toda enfrenta, embora alguns teimem em tentar fazer parecer que é só no Brasil.

Prisões ilegais

Infelizmente completamos um ano de pandemia, de lockdown, de isolamento social, vendo muita gente honesta sendo presa, mesmo que não estivesse oferecendo qualquer risco a outras pessoas.

Quem não se lembra da mulher que tomava sol sozinha numa praça de Araraquara (SP) e foi presa pela guarda municipal do prefeito Edinho Silva (PT)? E do adolescente atleta, nadador, preso ao sair do treino no mar, numa praia semi-deserta da zona sul do Rio de Janeiro, junto com a mãe que o esperava na calçada, numa ação da polícia do então governador Wilson Witzel (PSC)?

Já os casos de pessoas presas enquanto tentavam trabalhar por não terem como sobreviver se ficarem trancadas em casa acumulam-se pelo Brasil. O mais recente foi o do comerciante Eduardo Cornélio, de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Antes de destacar o despacho judicial que restabeleceu sua liberdade é preciso enfatizar que a polícia não tem culpa pelas prisões arbitrárias. Os policiais ou guardas municipais cumprem ordens de prefeitos e governadores e podem ser punidos em caso de desobediência.

É claro que não podem agir com truculência, como aconteceu em Araraquara. Guardas e PMs que se excedem respondem por abuso de autoridade.

Decisão judicial histórica

Os policiais de Ribeirão Preto, especificamente, foram educados e respeitadores. Segundo o relato do comerciante preso estavam até constrangidos por terem que efetuar a prisão.

Ribeirão Preto está sob vigência de decretos de lockdown assinados pelo prefeito e pelo governador de São Paulo, que assim como vários outros governadores e prefeitos mandaram fechar todos os serviços considerados por eles não essenciais. Era o caso da loja de roupas do comerciante Eduardo Cornélio.

A questão é: o governador João Doria e o prefeito Duarte Nogueira (PSDB), assim como os demais governadores e os prefeitos, têm mesmo direito de fazer isso com a população? É legal avançar sobre as liberdades garantidas pela Constituição e mandar prender em flagrante quem desrespeita os decretos de lockdown?

O juiz Giovani Augusto Guimarães, de Ribeirão Preto, acha que não. No dia seguinte ao da prisão do comerciante ele atendeu um pedido da Defensoria Pública e expediu ordem de soltura.

"Conforme ressabido, de acordo com os artigos 136 e 137 da Magna Carta brasileira, as únicas hipóteses em que se podem restringir alguns dos direitos e garantias fundamentais são os chamados Estado de Defesa e o Estado de  Sítio, cuja decretação compete ao Presidente da República, com aprovação do Congresso Nacional."

Giovani Augusto Guimarães, juiz da comarca de Ribeirão Preto (SP)

No despacho, publicado pela Gazeta do Povo, o juiz segue explicando que “Atualmente, não vigora nenhum desses regimes de exceção no Brasil, de modo que o direito ao trabalho, ao uso da propriedade privada (no caso, o estabelecimento comercial) e à livre circulação jamais poderiam ser restringidos, sem que isso configurasse patente violação às normas constitucionais mencionadas.”

Na decisão o juiz também cita um entendimento recente do STF numa ação julgada no ano passado (ADI 6341) a pedido do PDT, de Ciro Gomes, que queria tirar mais poderes do presidente da República. Os ministros decidiram que as medidas adotadas pelas autoridades no combate à pandemia precisam ser justificadas e obedecer a critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS), além de ter respaldo científico.

Ele lembra de estudos de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), da Universidade de Stanford, nos EUA, e da revista britânica Nature que colocam em dúvida a eficácia do lockdown para reduzir o número de casos de Covid. Comparando cidades e estados de vários países que fizeram restrições à abertura do comércio e à circulação de pessoas a outros, que não fizeram, os pesquisadores não se detectaram diferenças significativas no número de contaminados ou mortos.

"A Organização Mundial da Saúde já apelou aos governantes para que deixem de usar o lockdown, medida que 'tem apenas uma consequência que você nunca deve menosprezar: torna os pobres muito mais pobres', diz o juiz em outro trecho.

"Qual, então, o respaldo do decreto governamental, no qual se fundou a prisão do indiciado, diante da Constituição da República, da decisão do Supremo Tribunal Federal pertinente ao tema, das orientações da Organização Mundial da Saúde e da ciência? Absolutamente nenhum".

Giovani Augusto Guimarães, juiz da comarca de Ribeirão Preto (SP)

Ou seja, mesmo considerando a intenção legítima dos decretos, de atrasar internações até que haja mais leitos nos hospitais, não dá para aceitar a prisão do comerciante.

Liberdade de expressão e manifestações

Se a decisão do juiz de Ribeirão Preto trouxe algum alento a respeito da manutenção das liberdades de ir e vir, e também de trabalhar e garantir a subsistência da família, não dá para dizer o mesmo quanto à liberdade de expressão, que segue ameaçada.

Já mencionei isso em outros vídeos e artigos, mas nunca é demais lembrar do inquérito ilegal das Fake News no STF e daquele outro, o dos supostos atos antidemocráticos, que tiram a liberdade de manifestação de pessoas descontentes com a forma de atuação do próprio STF ou do Congresso.

Ambos vêm produzindo buscas, apreensões e prisões arbitrárias, sem que os alvos sequer sejam informados por que são investigados ou do que são acusados. É gente perdendo liberdades individuais, inclusive a de se defender de acusações, já que o STF, encarregado das investigações, não informa aos investigados e nem mesmo a seus advogados sobre os motivos das prisões.

Há ainda o caso do desrespeito às liberdades individuais garantidas a parlamentares, como no deputado Daniel Silveira, preso sob alegação de que feriu a Lei de Segurança Nacional. Por ter falado mal de ministros do STF num vídeo foi interpretado como uma ameaça ao Supremo Tribunal Federal. Ficou preso quase um mês e só foi liberado para prisão domiciliar no último domingo depois da pressão das ruas.

Acreditando nas liberdades individuais garantidas pela Constituição e se sentindo ainda livres, as pessoas foram para a rua de forma espontânea. O clamor era por Liberdade. Ainda que as manifestações tenham sido boicotadas pela maior parte da imprensa, a internet está cheia de vídeos mostrando que a maior parte dos manifestantes também estava respeitando as regras sanitárias, usando máscaras, álcool em gel e mantendo distanciamento.

Em várias cidades houve carreatas, inclusive. As pessoas nem saíam dos carros, apenas buzinavam, mostravam cartazes e gritavam pedindo que suas liberdades individuais sejam respeitadas pelos governantes e pelo Judiciário. Protestavam também contra a anulação dos processos do presidente Lula na Lava Jato de Curitiba.

Os que acusam de irresponsável quem se manifesta contra ordens autoritárias e inconstitucionais, contra decisões arbitrárias do STF e que ainda aplaudem quando a polícia é enviada para prender cidadãos honestos por "crime" de ir e vir, "crime" de se manifestar, "crime" de opinião, agora começam a sentir o peso de terem apoiado medidas ditatoriais.

Já citei em outro artigo recente os casos do humorista Danilo Gentili e dos políticos Ciro Gomes e Marcelo Freixo. Os três são alvo de pedidos de investigação sobre possível descumprimento da mesma Lei de Segurança Nacional que oi aplicada no caso do deputado Daniel Silveira.

A diferença é que em vez de reclamar de ministros do STF eles desafiavam parlamentares e xingavam o presidente da República. Há mais gente que comemorou quando a liberdade de expressão dos outros foi tolhida, mas agora está percebendo que uma hora o feitiço pode virar contra o feiticeiro. Não é mesmo, Felipe Neto?

Liberdades individuais na prática

Continuo defendendo que todo mundo possa dizer o que quiser, desde que respeite a Constituição e não se esconda no anonimato, como é o caso daqueles vândalos que se intitulam antifascistas, mas escondem o rosto para não serem identificados enquanto promovem quebradeira e arruaça.

Mostrando a cara, assinando embaixo dos xingamentos, acusações e ameaças que faz, o cidadão é livre para falar o que quiser, porque pode ser processado por crimes de ameaça, injúria, difamação ou calúnia. Isso tem acontecido com várias pessoas, famosas ou não, que abusaram do direito de falar o que bem entendem. Mas mesmo estas só podem ser presas se forem condenadas. Normalmente a punição é multa e prestação de serviços à comunidade.

Para terminar de forma mais leve, trago aqui o exemplo de um jeitinho brasileiro de respeitar as regras e continuar vivendo a liberdade de ser feliz: o casamento no ônibus. Esse foi mais um vídeo que circulou na internet nos últimos dias.

Um casal de noivos do Ceará foi para dentro de um ônibus com os parentes e amigos mais próximos, um pastor e um violinista, todos de máscara, para não precisar adiar ainda mais a cerimônia. O áudio da filmagem é ruim, mas dá para entender a explicação do homem que celebra a união.

"Estamos aqui reunidos para celebrar o amor deste casal, que há um ano vem remarcando a realização deste sonho. Resolvemos fazer esta celebração no transporte público já que é um dos locais mais seguros, segundo as autoridades."

Pastor, durante celebração de um casamento dentro de um ônibus

É isso! Liberdade combina com felicidade e com responsabilidade, mas não com imposição, ditadura e prisão.

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