Patrulheiros ideológicos avançam sobre a língua portuguesa: não passarão! A frase para introduzir o tema da linguagem neutra pode parecer provocação aos mais apressados em julgar, mas é uma constatação. E não é minha, uma profissional que há mais de trinta anos tem a língua portuguesa como ferramenta de trabalho, e sim, dos profissionais cuja missão é ensinar a língua a gerações mais novas.
Como prometi em minha última coluna, quando abordei os ataques do "politicamente correto" sobre a história, a cultura e até a indústria e o comércio, cá estou para comentar essa outra tentativa de mudança forçada dos costumes. O patrulhamento da língua é algo tão absurdo que merece uma análise à parte.
Não é de hoje que vemos pessoas forçando alterações na forma de falar a título de promover inclusão. A história do “todos e todas” é uma delas. Começou devagar, em uma ou outra palestra para grupos específicos, mas já avançou sobre eventos de todo tipo, invadiu as salas de aula e agora, durante a pandemia, as lives e videoconferências.
Alastrou-se de tal forma que quem usa a língua de forma correta, em que a palavra “todos” refere-se a todo mundo mesmo, é olhado com estranheza, julgado e condenado por antecipação a carregar a pecha de machista e homofóbico. Dizem que isso começou na década de 1980, quando Sarney tornou-se presidente e lançou aquele bordão “brasileiras e brasileiros”, usado ao longo de todo o governo.
Seria apenas mais uma herança maldita daquele período, que nos deixou inflação altíssima e a Constituição "cidadã" cheia de falhas, mas o estrago não foi pequeno. De lá pra cá o negócio ganhou ares de paranoia. A patrulha da língua se armou e saiu atirando para tudo o que é lado a ponto de hoje existir uma corrente pregando uma mudança geral na língua portuguesa para que ela passe a ser neutra, ou "neutrE" como alguns já andam dizendo.
E não adianta pregar a ideia de que é melhor ficar calado diante de uma aberração dessas para não dar divulgação ao que merece cair no esquecimento, porque o momento é de falar muito sobre isso, expor argumentos, mostrar o ridículo da proposta, para evitar que avance. Como disse um leitor na área de comentários da última coluna que escrevi: "Eu ainda prefiro tomar conhecimento das maluquices que tentam impor ao povo, do que deixar um negócio desses se infiltrar sorrateiramente na sociedade.”
E essa infiltração sorrateira está acontecendo. A patrulha da tal linguagem "neutrE" já começou a avançar sobre o território das escolas, inclusive. A Gazeta do Povo mostrou há poucos dias o caso de uma aula para uma turma do 8° ano de um colégio particular de Recife em que os slides projetados para os alunos continham neologismos como "elU' e “obrigadE”.
A escola alegou que o tema foi sugerido pelos próprios alunos, o que pouco importa. O tema podia ser discutido sem que o professor espalhasse mentiras e expusesse a língua de forma errada. Vejam o que está escrito no slide: “Muitas pessoas dizem que pronomes neutros não existem apenas por não existirem em dicionários ou algo do gênero. Mas pronomes neutros existem sim.”
Isso é mentira! Para fazer parecer que é verdade o responsável pelo conteúdo da aula mudou a forma de escrever as palavras na sequência do texto. “Os pronomes neutros são uma forma de nos referirmos a alguém de forma que essa pessoa se sinta mais confortável. Precisamos respeitar mais o próximo e isso inclui respeitar seus pronomes e a forma como elU se sente mais confortável em ser chamadE. ObrigadE pela atenção”. Os grifos são meus. Tem que respirar fundo depois de ler uma coisa dessas!
Forçar a maioria a aceitar rotulações e modismos de uma minoria já é chato, mas querer mudar a estrutura da língua por razões ideológicas é algo bem pior, perigoso até: é um primeiro passo para dominar a cultura e a mente das pessoas.
Por sorte, o que os defensores da tal linguagem neutra querem é impossível de aplicar ao português. E agora eu me permito transformar esse artigo numa miniaula para trazer argumentos que te ajudem a depois rebater essa bobagem da linguagem neutra sempre que alguém trouxer a discussão à tona.
Linguagem neutra é impossível de aplicar ao português
Em outra publicação recente aqui da Gazeta do Povo, um artigo escrito por uma professora de português (que também é escritora, ou seja, é uma profissional da língua), está escancarada a impossibilidade de transformar o português numa língua neutra, como o inglês, por exemplo, que não tem artigos feminino e masculino para classificar coisas ou pessoas e nem muda a terminação de substantivos, adjetivos, plurais e até numerais para se adequar ao gênero atribuído às palavras.
Se fossemos dizer que “casa”, por exemplo, não é um substantivo feminino, teríamos que mudar todas as palavras da frase “uma casa amarela linda”, porque nela o numeral e os adjetivos estão adequados ao gênero feminino, já que casa é um substantivo feminino.
A argumentação da professora e escritora Vivian Mansano vai muito além disso. Ela entra no mérito das palavras finalizadas com "ssão" e “ção”, como “depressão”, “impressão”, “ficção” e “ação”, todas elas femininas, apesar da letra final "o"; e de muitas que terminam com “a” e são masculinas, como “pijama”, “motorista” e “poeta”.
Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa serve aos dois gêneros, independentemente da última letra. Feliz, triste, inteligente, especial, rude, agradável, desagradável. A professora, aliás, lembra que a letra final de uma palavra não indica seu gênero e que trocar um “a” por um “e” não faz com que uma palavra seja neutra. Ela cita por exemplo, que “A alface” é feminina; e “o elefante” é masculino, e isso nada tem a ver com suas letras.
Esse detalhe, das palavras que terminam com a letra “e” é um ponto crucial nessa discussão. Muitos defendem que “e” seria um artigo neutro e que palavras como “atendente” e “estudante” são neutras, mas elas não são. O que define o gênero nesse caso é o artigo que se usa antes do substantivo. "O" estudante, ou "a" estudante. É a mesma situação, já manjada, de “o” presidente e “a” presidente. Ainda que no caso de presidente exista a forma opcional da terminação com "a" é curioso que os defensores da linguagem "neutrE" continuem falando "presidentA".
O português é uma língua riquíssima, que deriva do latim e tem uma estrutura linguística diversa a ponto de ter não só artigos, substantivos e adjetivos classificados por gênero, mas, como falei antes, até numerais e outros pronomes. Além dos pessoais (ele, ela, eles e elas) tem os possessivos.
De que adiantaria falar elU ou elX, em vez de ele e ela, se na hora de mencionar algo que pertence a ela ou a ele teríamos que mudar para delU ou delX, em vez de dele e dela? E como substituir “meu” e “minha”? Meu copo, minha xícara? Mex copx? Minhx xicarx? Não tem nem como pronunciar nada disso. Cai no ridículo mesmo.
É preciso entender que as línguas são vivas e estão em eterno processo de adaptação às mudanças do mundo. Novas palavras surgem, outras deixam de ser usadas, mas isso é um processo lento e paulatino, que chega a levar séculos para ser incorporado pela escrita, depois de modificado pela fala das pessoas. Não é com modismos que se muda toda a estrutura de um idioma.
Antes de encerrar trago outro comentário de leitor da Gazeta do Povo. Para ironizar a tal da linguagem neutra ele lembrou a letra daquela música do Djavan: “mais fácil aprender japonês em braile”. E acrescentou: “precisamos é de muita educação, com ênfase na palavra respeito." Como nada que vem de forma tirânica é bem aceito, é preciso mesmo entender o porquê de respeitar as diferenças e praticar o respeito. Só assim todos vão incorporar ao seu dicionário e à sua vida a palavra aceitação.
Por fim, voltando à questão do “todos e todas”, se tem mulher que se ofende e se sente excluída caso esteja numa plateia heterogênea e quem fala use apenas a palavra “todos” para se direcionar a “todos os presentes”, como vamos passar a usar a palavra “pessoa”, que é supostamente do gênero feminino, mas refere-se a mulheres e homens? A pessoa e o pessoo? E isso não seria "neutrE", certo?
No artigo que escreveu para Gazeta a professora Vivian Mansano lembra que “os gêneros de substantivos em português são completamente arbitrários, tendo mais a ver com a evolução do latim do que com gêneros reais de pessoas."
Se há algum mérito nessa discussão toda acredito que seja o de mostrar mais uma vez a incoerência de determinados movimentos que teimam em ver discriminação onde não há e esquecem de cobrar melhora na educação, porque isso sim reduz preconceito e aumenta o respeito às diferenças. Imposições, de qualquer tipo, geram intolerância. E acho que em um ponto todos concordam: o que menos se quer atualmente é aumento da intolerância.
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