Foro privilegiado é um daqueles assuntos entalados na nossa garganta, com o qual parte do Congresso também demonstrou preocupação por um tempo, que parece ter caído no esquecimento dos nobres parlamentares diante das incontáveis urgências trazidas pela pandemia de Covid-19.
Já a corrupção, que parecia arquivada nos anais do passado recente, voltou a mostrar suas garras. Em âmbitos estaduais e municipais, mas voltou! E basta uma denúncia de superfaturamento na compra de máscaras ou respiradores por secretários de saúde, prefeitos ou governadores para nos lembrarmos da necessidade urgente de acabar com mais esse privilégio tupiniquim, que superlota as mesas do STF e dá a corruptos a chance de se esquivarem por anos da responsabilização, já que a Justiça, para eles, nesses casos, é muito mais lenta do que para os demais cidadãos acusados de crimes e julgados pela justiça comum.
PEC do foro privilegiado
O projeto para acabar com o foro privilegiado de políticos, juízes, procuradores e outras autoridades é antigo e complexo. Por se tratar de uma proposta de emenda constitucional (PEC), exige duas votações no Senado e na Câmara com aprovação de mais de 60% dos parlamentares, o que significa longas discussões.
A PEC 10/2013 foi apresentada há sete anos pelo senador Álvaro Dias (Podemos-PR), quando a Lava Jato ainda nem tinha começado. E passou a entrar no radar do cidadão comum justamente por causa da Lava Jato, depois que ficou claro que os políticos acusados de corrupção ficariam impunes por anos, tal qual já havia acontecido em alguns casos rumorosos como os do ex-governador Paulo Maluf, de São Paulo, e do ex-senador do Distrito Federal, Luís Estêvão (aquele da construção do prédio megalomaníaco e superfaturado do TRT de São Paulo).
Maluf e Estêvão acabaram presos apenas décadas depois e por pouco tempo, já que ganharam outros benefícios previstos em lei. A Lava Jato mesmo já nos deu mostras de que os crimes cometidos por políticos às vezes até prescrevem, só porque os processos deles não são analisados pela justiça comum, que é mais "célere" – como gosta de dizer o pessoal do Judiciário.
Lembrei do assunto depois da entrevista que fiz há poucos dias com o ministro do STF Luís Roberto Barroso, publicada aqui nesta coluna na terça-feira (13).
Falávamos sobre ativismo judicial e fake news como ameaças à democracia, quando o próprio ministro trouxe à tona também a questão do foro privilegiado e o quanto ele atrapalha o andamento do trabalho do STF e portanto a própria Justiça e a democracia.
O ministro tinha um dado de 2017. Não é muito recente, mas dá uma boa ideia do tamanho do problema. Só naquele ano o STF tinha 500 processos criminais para analisar envolvendo parlamentares com foro privilegiado. Se fossem "só" esses para julgar, até que podíamos ter esperança, mas eles somam-se a 50 mil processos que entram no tribunal todos os anos. No total há, segundo o ministro, 80 milhões de processos em andamento no STF. Oitenta milhões! E são só 11 juízes supremos. É claro que a coisa não pode andar! Faço questão de abrir aspas para uma frase do ministro.
“O Supremo não deveria ter, ao menos na extensão que tem, a competência penal, não deveria existir o foro privilegiado e a possibilidade de todos os casos criminais chegarem ao Supremo.”
Luís Roberto Barroso, ministro do STF
É muito danoso para o país que uma corte constitucional tenha sido transformada em tribunal de aplicação do Direito Penal. Isso significa colocar os juízes do Supremo analisando casos criminais como se fossem juízes de primeiro grau.
A gente fica com raiva do STF pela aparente lentidão em julgar os processos contra políticos, mas o que é preciso mesmo é jogar o foco sobre o Congresso, que é a instituição que pode acabar com o foro privilegiado e mudar toda essa história. Então vamos ao que interessa...
Como está a discussão do fim do foro privilegiado no Congresso
Depois que o senador Álvaro Dias apresentou a PEC 10/2013 para acabar com o privilégio de políticos e outras autoridades acusadas de crimes serem julgadas em instâncias superiores a discussão no Senado se estendeu por quatro anos. O Senado aprovou a PEC em junho de 2017 e a proposta foi, imediatamente, encaminhada para a Câmara dos Deputados, onde ganhou novo número (PEC 333/2017).
Na Câmara, a tramitação começou na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que discutiu o assunto por cinco meses, aprovou um parecer e encaminhou para uma outra comissão, especial, onde os debates duraram mais de um ano. Em dezembro de 2018, no finzinho da última legislatura a Comissão Especial aprovou o parecer para acabar com o foro privilegiado, que hoje, segundo levantamento feito pela Consultoria Legislativa do Senado, beneficia 54 mil pessoas com cargos públicos no país.
Pela proposta o foro especial passaria a valer só para cinco pessoas: os chefes dos três poderes, que são, na verdade, quatro pessoas: os presidentes do STF, da Câmara dos Deputados, do Senado e da República. O vice-presidente da República seria a 5ª pessoa com foro privilegiado garantido.
A proposta aprovada no Senado e nas comissões da Câmara acaba com a farra para uma lista imensa de agentes políticos e autoridades: deputados federais, senadores, ministros de estado, governadores, ministros de tribunais superiores, desembargadores, embaixadores, comandantes militares, integrantes de tribunais regionais federais, juízes federais, membros do Ministério Público, procurador-geral da República e membros dos conselhos de Justiça e do Ministério Público. Toda essa turma hoje tem foro privilegiado e deixará de ter se a PEC for aprovada também na Câmara.
Como eu disse a PEC já passou por todas as comissões, teve parecer aprovado no fim de 2018 e, em fevereiro de 2019, já com os novos deputados empossados, chegou ao plenário. Mas a discussão parou. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, responsável pela definição da pauta, vem ignorando o assunto desde fevereiro do ano passado, muito antes da pandemia e das prioridades atuais surgirem.
Eu fiz questão de contar quantos deputados apresentaram requerimentos pedindo à mesa diretora para colocar o projeto na ordem do dia para que ele fosse votado. Foram 16 deputados, só no ano passado, mais de um pedido por mês. E a insistência seguiu agora em 2020. De fevereiro para cá mais 3 deputados entraram com requerimento pedindo que a PEC, que está pronta para apreciação em plenário, fosse colocada em votação. O último pedido é do dia 30 de abril.
Então só nos resta perguntar ao deputado Rodrigo Maia por que um assunto tão importante como esse, que toda a sociedade espera ver analisado pelo Congresso, não é colocado na pauta? Por que os pedidos e lembretes de tantos deputados de que o projeto existe e está pronto para votação vêm sendo ignorados?
Minha sugestão para você, caro leitor, caso fique tão indignado quanto eu, é que mande e-mail ou ligue para o gabinete do presidente da Câmara, e também para os deputados que você acompanha, pedindo que eles pressionem o presidente Rodrigo Maia para incluir a PEC do fim do foro privilegiado na ordem do dia. Precisamos demonstrar que nós não esquecemos do assunto!
Aliás... se quiser fazer mais um bem para o país, entre no site da Câmara. Lá tem uma enquete perguntando a nossa opinião. No momento ela mostra 92% de aprovação total ao projeto, 6% de aprovação parcial e só 2% contra. Você vai ser solicitado a fazer um cadastro, mas os minutinhos serão bem gastos. A Câmara dos Deputados precisa saber o que achamos da PEC 333/2017.