Rússia, Ucrânia e Brasil estão no topo das buscas há dois dias por motivos óbvios, mas nessa era da informação às vezes o excesso mais confunde do que esclarece. É aquela máxima de que, numa guerra, a primeira vítima a sucumbir é a Verdade.
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Não sou especialista em geopolítica. Como jornalista, porém, tenho entrevistado muitos estudiosos de relações internacionais e, a pedidos, gravei um vídeo com um compilado de informações. Não é tudo e jamais será o suficiente, mas a intenção é ajudar a assimilar a complexidade de mais uma guerra que acompanhamos ao vivo.
Entender um pouco melhor este conflito armado e os possíveis reflexos dele para o mundo é mais importante do que se ater à guerra de narrativas políticas aqui do Brasil que, infelizmente, invade nossas vidas através do noticiário, do mundo virtual e até da área de comentários aqui na Gazeta do Povo.
Segue a versão em texto para quem prefere ler em vez de clicar no play da imagem que ilustra essa página e assistir ao vídeo.
Rússia, Ucrânia e OTAN
Vamos lembrar que já nas primeiras semanas de 2022, enfrentando mais uma onda da pandemia de Covid-19, o mundo ficou sabendo de manobras militares na Rússia em pontos perto da fronteira com a Ucrânia. Isso já era um sinal de que algo não andava bem entre esses dois países.
A Ucrânia, que até o início dos anos 90 fazia parte da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, liderada por Moscou, atualmente tem um governo que se identifica mais com os interesses capitalistas do Ocidente do que com o comunismo russo.
O país estava prestes a entrar para a Organização do Tratado do Atlântico Norte, união de países da Europa e América do Norte surgida no fim da Segunda Guerra Mundial, não para se fundir numa única nação, como foi o caso da União Soviética, e sim, para unir forças militares justamente contra a Rússia, caso fosse necessário.
Atualmente fazem parte da OTAN, além de Estados Unidos e Canadá, quase todos os países da Europa, inclusive ex-repúblicas soviéticas.
Entrando para o grupo, a Ucrânia deixaria a Rússia em situação de vulnerabilidade geográfica, já que tropas do Ocidente poderiam usar o território ucraniano para bases militares, tendo a Rússia como alvo.
Foi para fazer pressão contra a intenção da Ucrânia de aderir ao Tratado do Atlântico Norte que a Rússia começou manobras na fronteira com tanques do Exército e dezenas de milhares de soldados. Como a pressão não surtiu efeito, as tropas receberam ordem de Moscou para invadir o país vizinho.
Gasoduto Nord Stream 2
Há uma questão paralela no conflito Rússia-Ucrânia: o fim da construção do gasoduto Nord Stream 2, uma tubulação para fornecimento de gás da Rússia direto para a Alemanha, sem passar pela Ucrânia, como acontecia antes o que mudará, portanto, as relações comerciais na região.
O gasoduto, finalizado em setembro, mas até hoje não inaugurado por falta de regulamentação, custou uma fortuna (10 bilhões de euros, quase 12 bilhões de dólares ou 60 bilhões de reais). O dinheiro saiu de grandes grupos europeus do setor de energia que, com certeza, viram ali a chance de retorno rápido dos investimentos.
Gás, na Europa, é como ouro, porque garante o aquecimento das casas em lugares onde o inverno costuma ser muito rigoroso, ou seja, na maior parte do continente.
Críticas ao investimento vêm tanto da Europa como dos Estados Unidos. É quase consenso que o Nord Stream 2, apesar de ser um grande negócio para a Alemanha, vai aumentar a dependência da Europa pela energia vinda da Rússia, o que é um perigo numa região tão conflituosa do planeta.
Para a Ucrânia a nova tubulação ligando a Rússia à Europa é um duro golpe econômico. O país perde uma importante receita de 1,5 bilhão de dólares por ano, advinda de taxas cobradas sobre a passagem do gás russo por seu território.
Não à toa, depois do anúncio da conclusão da obra, há cinco meses, a presidência ucraniana afirmou que o país lutaria contra este projeto político russo até o fim.
Diplomacia falhou
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, não aceitou negociar sob pressão a possível desistência de entrar para a OTAN e, obviamente, não conseguiu sequer discutir novos termos para a questão da receita perdida com o fim da passagem do gás por seu território.
A falta de acordo levou a Rússia a aumentar a provocação, reconhecendo como independentes duas províncias ucranianas que já queriam se separar do país, em região próxima à Criméia, anexada pela Rússia em 2014, em movimento parecido com o atual.
Com isso, um conflito interno na Ucrânia acabou fortalecido exatamente num momento de extrema fragilidade política para o presidente da República. Em seguida, a título de "ajudar" as repúblicas independentes, a Rússia invadiu a Ucrânia.
Não foi uma mera ocupação, mas um ataque com bombas, que causaram destruição de áreas militares, provocaram ferimentos e mortes, inclusive de civis.
A Ucrânia não teve forças para reagir à altura. O país é grande se comparado com outros da Europa. Equivale à soma das áreas de Portugal e Espanha, mas é um nanico perto da Rússia.
Não é só minúsculo em termos geográficos. É também pequeno no poderio militar. Tem menos tanques, armas, homens para lutar, e agora, claro, uma população civil amedrontada, embora parte considerável dos homens esteja disposta a lutar para garantir a soberania de seu país.
Rotina de guerra
Horas depois do início do bombardeio da Rússia sobre a Ucrânia, os ucranianos de 18 a 60 anos foram proibidos de sair do país para ficar de prontidão para a guerra.
Antes disso, já havia o registro de tentativas de fuga em massa para países vizinhos. Imagens reproduzidas pela televisão mostravam estradas congestionadas desde as primeiras horas desta quinta-feira (24), quando começaram os ataques.
O pavor da população também fica claro em outras filmagens. Além das cenas chocantes de bombardeios, os primeiros registros que surgiram na imprensa e mesmo nas redes sociais mostravam famílias inteiras a pé, arrastando malas pela rua, e estações de metrô transformadas em abrigos antiaéreos.
A capital, Kiev, distante do local atingido pelos primeiros mísseis, transformou-se logo num cenário de desolação, como mostra vídeo divulgado pelo repórter Ian Boechat no Twitter. De dentro de um carro em movimento ele filmou ruas completamente desertas, já com a população acuada em casa diante da notícia de aproximação de tropas russas também da capital.
É desesperador imaginar a angústia dos ucranianos, que estão sem saber até quando terão acesso a comida, água e, o principal, sem saber por quanto tempo terão segurança dentro da própria residência, já que helicópteros militares rondam o espaço aéreo e ouve-se barulho de mísseis sendo disparados em vários bairros da capital e cidades do interior.
Resposta do mundo à invasão da Ucrânia pela Rússia
Momentos depois dos primeiros ataques russos à Ucrânia vários países da OTAN, e também outros que não pertencem à aliança, decretaram sanções econômicas à Rússia.
Operações financeiras foram interrompidas, bem como o comércio internacional. Barrar exportações é uma tentativa de asfixiar a economia russa para ver se o presidente Putin se dispõe a negociar.
A população russa, que em grande parte não apoia o presidente, também sofre com isso, mas a essa altura a pressão externa é necessária para se tentar demover o presidente Putin de seguir atacando a Ucrânia.
Não se sabe quais serão as próximas etapas dessa guerra. O presidente da China, aliado da Rússia, tenta influenciar um recuo e já pediu uma resolução do conflito pela via diplomática. Por enquanto, não há sinais se e quando isso virá.
De qualquer forma, o que nós brasileiros, precisamos ter claro é que os efeitos do conflito serão sentidos aqui, bem como no resto do mundo. Provavelmente haverá inflação e, a depender da duração e da magnitude da guerra, os preços podem subir mais do que a inflação já sentida como reflexo dos lockdowns decretados na pandemia.
Muita gente tentará, mais uma vez, associar a inflação à má gestão da economia por parte do ministro Paulo Guedes ou do próprio presidente Jair Bolsonaro. Narrativas políticas são plantadas para confundir, em vez de esclarecer.
Fato é que muitos preços podem subir em função deste início de guerra por causa de quebra na cadeia de fornecimento de produtos, não só pela situação de paralisia econômica nos países envolvidos no conflito, mas pelas sanções impostas à Rússia por outros países.
Já tem jornal até divulgando a lista do que deve ficar mais caro. Combustíveis, que vêm enfrentando alta nos preços no mundo todo há meses; trigo, milho e derivados são alguns deles, por serem produtos que Rússia ou Ucrânia exportam para vários países, incluindo o Brasil.
No caso brasileiro há ainda a questão específica dos fertilizantes, que foi inclusive o motivo da viagem recente do presidente Bolsonaro à Rússia.
Bolsonaro na Rússia, dias antes do início da guerra
A oposição não poupou críticas à viagem do presidente Bolsonaro à Rússia, como se ele tivesse ido a Moscou para incentivar Putin a começar uma guerra com a Ucrânia.
Segundo o governo, a conversa presencial era imprescindível para garantir que a Rússia continuasse fornecendo fertilizantes para o Brasil, algo que já está em falta no mundo.
Sem fertilizantes, o Brasil é atingido em cheio justamente em seu ponto forte: o agronegócio, que, aliás, alimenta os brasileiros e a população de muitos outros países.
O presidente Bolsonaro voltou daquela viagem dizendo que não só obteve a garantia de fornecimento normal de fertilizantes usados nas lavouras brasileiras, mas também o comprometimento de que a Rússia fornecerá o dobro, permitindo até aumento na produção de alimentos no Brasil.
Esse acordo pode não ser cumprido? Pode. Geraria queda na produção nacional, desemprego, inflação de alimentos e fome aqui e no mundo, já que o Brasil alimenta pelo menos um em cada sete habitantes do planeta.
Se a guerra da Rússia com a Ucrânia avançar, o fornecimento de fertilizantes fica ainda mais comprometido, porque a Ucrânia também é um grande fornecedor para o Brasil.
Vamos torcer para que a diplomacia consiga resolver o conflito, especialmente para poupar vidas, mas também para preservar as relações comerciais entre os países, hoje tão dependentes uns dos outros.
Cabe a nós evitar a onda da politização de tudo. Em ano eleitoral, o Brasil já vive uma guerra de narrativas entre os pré-candidatos. É claro que todos que querem assumir a Presidência da República tentam desgastar o governo para ver se enfraquecem a imagem do presidente, mesmo quando o foco não deveria estar aqui e sim, do outro lado do oceano.
O Brasil tem histórico pacifista. Sempre esteve aberto para a imigração. Além disso o povo brasileiro é miscigenado; somos quase todos descendentes de várias raças.
Não preciso nem dizer que há muitos descendentes de russos no Brasil. De ucranianos, então, nem se fala! São 600 mil, 80% deles vivendo no Paraná. Curitiba tem até memorial ucraniano. Em Prudentópolis, no interior do estado, a língua ucraniana é falada em escolas e cultos religiosos, além das casas.
Enquanto a diplomacia brasileira trabalha por paz, é nisso e apenas nisso que deveríamos focar. Não dissemine narrativas de guerra, nem mesmo de guerra política.
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