Aqui no Brasil, nas inúmeras discussões a respeito da religião e sua relevância no que chamamos de “arena pública”, ou seja, na interação social que transcende aos muros das instituições, falta-nos uma grande perspectiva: aqui ainda há liberdade (por mais ameaçada que esteja).
Vivemos em um oásis em meio a um deserto de perseguição severa, onde ter sua consciência cativa a uma confissão religiosa minoritária pode significar, efetivamente, perseguição, prisão e até morte.
Na Argélia muçulmana (98% da população de quase 45 milhões de habitantes) vivem aproximadamente 90.000 cristãos, a maioria convertidos do Islã e seus descendentes. Muitos desses convertidos são berberes, indígenas do norte da África, mas uma minoria étnica neste país predominantemente árabe (que, curiosamente, denominam-se como Imazighen, “homens livres”). Embora não seja ilegal se converter do Islã, o que, em muitos países é criminalizado como “apostasia”, aqueles que tentam converter muçulmanos enfrentam o risco de uma sentença de até cinco anos de prisão.
O país tem o Islã como religião oficial do Estado. A Constituição, ainda assim, garante liberdade "para praticar o culto", desde que dentro da lei – o que é bem diferente de uma garantia estatal de livre exercício religioso, que vai além do culto, passando também pelo ensino, proselitismo, expressão etc. E também vai além de lugares específicos que recebam autorização para funcionarem como templos.
Exemplo da dificuldade é que outras regulamentações reduzem a eficácia dessa garantia para não muçulmanos. Embora uma portaria de 2006 permita que a Comissão Nacional para o Culto Não Muçulmano conceda permissões para igrejas, até o momento nenhuma permissão foi emitida, apesar dos pedidos feitos pelas igrejas.
Comitês de segurança de construção têm inspecionado muitos edifícios de igrejas desde novembro de 2017, com o objetivo de determinar quais igrejas se qualificam para permissões de acordo com a portaria de 2006. Mais de 20 igrejas foram ordenadas a fechar desde o início de 2018, mas apenas três conseguiram obter permissão para reabrir.
Em abril de 2022, a igreja de Aouchiche, na cidade portuária de Béjaïa, recebeu uma ordem administrativa de fechamento. A congregação, composta por 300 membros, é afiliada à EPA (Église Protestante d'Algérie), o grupo oficialmente reconhecido de igrejas protestantes na Argélia. Em novembro de 2021, o governo argelino convocou o pastor Salah Chalah, presidente da EPA, para comparecer ao tribunal por praticar ritos não muçulmanos sem permissão.
Em fevereiro de 2022, autoridades locais iniciaram processos legais contra líderes de outra igreja da EPA em Ait Atteli, na província de Tizi Ouzou, visando o fechamento da igreja. O governador provincial tomou essa medida contra o pastor e seu pai, proprietário do terreno onde a igreja está localizada. Tizi Ouzou é a província com maior concentração de cristãos no país.
E o exemplo mais próximo é o do pastor Youssef Ourahamane, convertido ao cristianismo e líder de igreja eclesiástico (um dos líderes da EPA), que está recorrendo de sua condenação por "culto ilegal" por participar e liderar a Igreja Emmanuel no país.
Nascido em uma família muçulmana, Pastor Youssef foi convertido ao cristianismo durante seus anos de estudante. Em 2 de julho de 2023, ele foi condenado a 2 anos de prisão e multa de 100.000 dinares argelinos por seu envolvimento e liderança na igreja, apesar da falta de provas apresentadas pelas autoridades. Ele apelou da condenação pela segunda vez em um tribunal em Tizi Ouzo, Argélia, e a decisão deve sair na próxima semana.
Entidades internacionais, como o Middle East Concern, ADF International e Barnabas Aid, são fundamentais no cuidado com estas populações cruelmente perseguidas, bem como batalham no front legal para denunciar as violações terríveis ao direito humano fundamental de exercer sua fé religiosa.
Seja por perseguição frontal, seja pela interferência indevida do Estado de maneira a criar dificuldades (o que no Brasil é vedado pelo art. 19, I, da Constituição, quando mostra que não poderá embaraçar o funcionamento dos templos), ou ainda por medidas de “segurança” ou “sanitárias”, sempre que vemos autoridades públicas buscando reprimir o exercício da fé, aí temos diminuição drástica nos níveis de acesso à cidadania e o prédio da democracia facilmente tende a colapsar.
Não é à toa que exercitar as liberdades fundamentais é uma “musculação cidadã”. Há tensão, pressões e vozes que querem se sobrepor ao exercício da fé – pois esta desperta sensibilidades que, em última análise, tendem a controlar a busca por poder.
A religião é um amálgama da democracia real, que vai além de simplesmente querer fazer do Estado uma “fonte dos desejos”, porém um muro de contenção da barbárie. Este legado civilizacional, inclusive, devemos ao cristianismo. Que possamos lembrar de homenagear o legado de liberdade que recebemos das gerações passadas, ver o que hoje se passa no mundo, e aprendermos com a dor do próximo para que não venhamos nós a experimentá-la.
Afinal, neste mundo globalizado, a Argélia é logo ali.
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