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Obviamente que os olhos do mundo todo se atentam para o triste conflito entre Rússia e Ucrânia. Embora os dados não sejam absolutamente confiáveis – a guerra de informação é uma das mais importantes facetas de qualquer combate armado – a estatal ucraniana já relatou mais de 2 mil civis mortos em uma semana de ataque das forças russas. Todas as vidas importam e fica aqui nosso respeito a todos os envolvidos.
Uma das notícias de alívio parece ter sido o acordo em que as delegações dos dois países chegaram de criar corredores humanitários, numa tentativa de diminuir o impacto horrível que as atividades militares produzem para os milhões de civis atingidos pelo ataque russo. Em tudo isto aplaudimos a bravura demonstrada pelo povo ucraniano, conforme editorial recente aqui da Gazeta. Realmente a liberdade custa muito caro, e são poucos os dispostos a pagar seu preço.
E é interessante analisar tanto a agressão russa em si, quanto a rica história ucraniana (que está longe de ser um território sem identidade nacional própria, como já muito bem analisado pelo Diogo Schelp aqui na Gazeta), suas conhecidas riquezas naturais também já destacadas e demais fatores que tentam explicar o que está acontecendo. É sempre uma lembrança de que não há um “progresso infinito e inexorável para o bem”, como alguns ingênuos pregam; o ser humano continua com os mesmos instintos e desejos (especialmente de poder). O sangue derramado sempre foi um argumento político eloquente, e, infelizmente, como espécie e civilização, não somos melhores do que isso.
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Um dos ângulos interessantes desta situação é a religiosa. Como se sabe, a Ucrânia e a Rússia têm uma ligação histórica interessante justamente pelo fato de que foi a partir do batismo do Príncipe de Kiev, Vladimir, o Grande. Este processo levou à cristianização da região, tanto Ucrânia quanto Rússia, ao cristianismo ortodoxo (que, inclusive romperia com Roma logo após o reinado deste príncipe, em 1054). A população ucraniana atual, de mais de 43 milhões de pessoas, é majoritariamente ortodoxa, embora haja liberdade religiosa para outras denominações cristãs e outras religiões minoritárias.
O curioso é que, dentro da própria ortodoxia – aquele cristianismo do leste europeu, pouco conhecido por nós ocidentais – há inevitáveis divisões e círculos de influência, em especial no tocante ao chamado soft power que a Igreja exerce sobre a cultura local. A Igreja Ortodoxa Russa é praticamente uma religião estabelecida, com amplas raízes nacionais e com seu líder, o Patriarca Cirilo I, exercendo grande influência sobre toda a região. Esta liderança tem tentáculos na Ucrânia, onde foi instituída a Igreja Ortodoxa Ucraniana-Patriarcado de Moscou.
Porém há também a Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Kyiv (aqui até o nome é interessante: enquanto “Kiev” é uma transliteração do idioma russo, “Kyiv” é transliteração do idioma ucraniano). Essa igreja é o resultado de uma unificação de três ramos autônomos ucranianos, reconhecidos em 2018 pelo Concílio Ecumênico realizado na Catedral de Santa Sofia, em Kyiv (vamos homenagear o bravo povo ucraniano). Esta Igreja – com jurisdição canônica nacional, e, portanto, fora do alcance da influência do Patriarca de Moscou – passa a ter grande presença na vida cultural daquele país, com mais de 7000 igrejas espalhadas pela Ucrânia.
O sangue derramado sempre foi um argumento político eloquente, e, infelizmente, como espécie e civilização, não somos melhores do que isso
Este movimento em 2018, apenas 4 anos após o conflito russo e anexação da Crimeia, onde Putin já havia colocado suas teses de submissão cultural do povo ucraniano que deveria ser uma nação russa absorvida, foi um grande recado aos russos. Uma Igreja identificada com a vocação nacional ucraniana, com língua, rito e um Patriarca próprio (no caso, Epifânio, Primaz da Igreja Ortodoxa da Ucrânia). O então presidente ucraniano, Petro Poroshenko, declarou na época que o contorno político deste movimento eclesiástico era mais uma prova da autodeterminação de seu povo, e um claro afastamento da influência moscovita em direção à Europa ocidental. A retaliação eclesiástica (ou será política?) veio de Moscou: a Igreja Ortodoxa Russa cortou relações com o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla – estabelecido desde o Cisma de 1054 – e ameaçou dividir todo o mundo ortodoxo.
E o que estamos vendo nesta invasão, apenas 4 anos depois da unificação da Igreja ortodoxa ucraniana? Entre as demandas de Putin pela capitulação de Zelensky e lideranças nacionais, está também situações envolvendo a liberdade da Igreja na Ucrânia, e a volta da submissão ao Patriarcado de Moscou! É o que disse o presidente do Partido Popular Europeu, Donald Tusk, ao citar fontes que afirmaram isso. Knox Thames, consultor internacional em liberdade religiosa afirma que “o que Putin busca é uma capitulação física e espiritual da Ucrânia”.
Há realmente perigos para os direitos humanos, e, em especial, para a liberdade religiosa no caso de uma vitória militar de Putin. Temos observado um tratamento perigoso a religiões minoritárias na Rússia, como é o caso recente de perseguições severas às Testemunhas de Jeová naquele país. A falta de pluralidade religiosa revela enfraquecimento da pluralidade política, e a liberdade e democracia sofrem igualmente. Devemos estar atentos aos desdobramentos deste conflito em todas as suas esferas, não mais descuidando o papel que a religião continua a exercer nos contornos políticos e culturais da civilização.