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A liberdade religiosa é o sustentáculo da relação sadia em que o Estado e a igreja atuam paralelamente, cada um na sua competência, em busca do bem comum do ser humano, resultando no modelo de laicidade brasileiro. O Estado não deve estar contido na igreja, assim como a igreja não deve estar contida no Estado, evitando-se, por consequência, erros do passado ou, ainda, casos em que sem democracia ou Estado de Direito, nos quais os Estados são totais e em si mesmos, a igreja e outros muitos segmentos são perseguidos. Exemplos são os regimes de laicismo de oposição absoluta à religião, ligados aos totalitarismos modernos: os marxistas-leninistas e o nacional-socialista, como lembra Jorge Miranda em “Estado, liberdade religiosa e laicidade”, (Observatório da Jurisdição Constitucional, ano 7, n. 1, 2014).
O Estado secular, ao restringir ou proibir a atividade religiosa ou, ainda, incentivar ou proteger esta ou aquela organização religiosa, estará se imiscuindo num plano que não é de sua competência, ferindo o seu fundamento ético. E, na hipótese do Estado que pratica o laicismo (não é o caso brasileiro), que não reconhece o plano espiritual, exatamente por esse motivo, tem como fundamento ético a separação entre igreja e Estado, mote da Declaração dos Estados da Virgínia (EUA); nessa senda, também ao reconhecer a impossibilidade de exigir impostos destas, fundamenta seu ponto de vista filosófico, teórico e jurídico.
Extinguir a imunidade tributária é comprometer, quando não ferir de morte, o avançado sistema de laicidade brasileiro e a liberdade religiosa mantida e garantida por ele
A imunidade tributária religiosa é um dos garantes da liberdade religiosa que contém a liberdade de crença, de culto e de organização religiosa. A imunidade não permite que o Estado se imiscua nas normas canônicas da igreja, que são essencialmente voltadas ao transcendental e ao cultivo do espírito humano, por simples poder de império.
A imunidade resulta na clara divisão de competências e das ordens entre Estado e igreja; garante à pessoa humana ser alvo da competência eclesiástica/religiosa ou não, e, à medida que escolhe esta ou aquela organização religiosa, possui a segurança de que não será atacado pela voracidade do Leviatã. É, sem sombra de dúvida, garantidora da liberdade religiosa.
Para navegarmos num ambiente de liberdade religiosa plena, é necessária a preservação do princípio de separação igreja-Estado e de sua não confessionalidade. A imunidade possui este condão de garantir a liberdade religiosa ao não permitir que o Estado contenha em si a igreja. Excluir a imunidade resultaria em afronta à liberdade.
Atualmente, encontra-se no Senado Federal a Sugestão 2/2015, que visa a extinção da imunidade tributária por suposta afronta ao Estado laico brasileiro. Nada é mais falacioso. A imunidade tributária religiosa visa exatamente preservar a separação entre o Estado e a igreja, donde decorre a laicidade brasileira, corolário da liberdade religiosa.
Extinguir a imunidade terá como efeito uma invasão de competência do Estado, ao se colocar superior à igreja pelo simples poder de império, fazendo com que ela seja contida em si, mesmo que suas funções sejam totalmente distintas; é trazer o reino do transcendente ao imanente, olvidando os fins da igreja, para torná-los um meio de o Estado buscar seu fim.
Além disso, ao restringir ou extinguir a imunidade tributária religiosa, estar-se-ia rompendo as normas canônicas que deveriam ter apenas correspondência com o sistema de crença desta ou daquela confissão religiosa, para permitir e até mesmo possibilitar a atividade fiscal de império nas mais comezinhas atividades eclesiais do fenômeno religioso. Extinguir a imunidade tributária é comprometer, quando não ferir de morte, o avançado sistema de laicidade brasileiro e a liberdade religiosa mantida e garantida por ele.
Inserir a igreja na regra-matriz de uma relação tributária é fazer com que o Estado a contenha e traga para dentro dele o reino e o cultivo do transcendental
A imunidade tributária religiosa coloca o Estado e a igreja em seus devidos lugares no caminho da busca incessante ao bem comum: o Estado, no auxílio ao ser humano na busca do bem comum imanente e temporal; a igreja, no auxílio ao ser humano na busca do bem comum transcendente, visando o cultivo do espírito e a eternidade. Inserir a igreja na regra-matriz de uma relação tributária é fazer com que o Estado a contenha e traga para dentro dele o reino e o cultivo do transcendental, verdadeira aberração jurídica. Seria o fim do avançado sistema de laicidade brasileira, com o intrometimento estatal desde em normas canônicas até no livre exercício do culto. Uma verdadeira afronta à laicidade e à liberdade religiosa.
Impor às organizações religiosas regras de estruturação em razão de uma competência fiscal tributária não vinculada é afrontar a liberdade religiosa, pois metafisicamente a imunidade tributária religiosa é o muro de separação entre igreja e Estado, donde decorre a liberdade religiosa plena que vivenciamos em solo brasileiro nos dias de hoje. Acabar com a imunidade é retroceder, derrubar o muro que separa a igreja e o Estado. É mitigar a liberdade religiosa em sua gênese.
(Texto adaptado da obra Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, de Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina. 3ª edição revista e ampliada, Edições Vida Nova, 2020)
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos