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Obviamente o assunto da semana (e de muitas que ainda virão) foi o “retorno” de Lula ao cenário político nacional, após a decisão do ministro Edson Fachin de anular todos os processos contra ele conduzidos no contexto da Operação Lava Jato.
Lula, em seu discurso pós-decisão, tocou em vários assuntos – analisados sob quase todos os ângulos pelos nossos colegas da Gazeta –, mas dedicou alguns segundos de sua fala para, digamos, expressar certo descontentamento com “as igrejas”. Usando o contexto da pandemia, criticou de forma primeiramente genérica e, depois, direta mesmo, o fato de que igrejas têm promovido cultos, além de outras situações.
Neste particular, sua fala foi: “o papel das igrejas é ajudar para orientar pessoas”. Até aí, mandou bem. Realmente, um dos papéis das igrejas é auxiliar e educar seus fiéis, influenciando a sociedade para o bem comum. Logo depois, sua crítica fica direcionada ao apóstolo Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, ao dizer: “não é vender grão de feijão” em referência a uma polêmica envolvendo o referido pastor. Houve, aliás, muita afirmação preconceituosa sobre este líder por causa da situação; há teologias diferentes, com visões diversas sobre o sagrado, e o espaço de liberdade religiosa está aí posto como está a democracia: com toda a sua fragilidade e exigência.
Somente com liberdade é que se alcança o fim último do Estado, qual seja, a promoção do bem comum do corpo político
A fragilidade existe justamente porque a liberdade é um liame delicado: deve existir apesar das diferentes forças e de interesses por vezes conflitantes na arena pública; exigente porque requer maturidade tanto dos detentores do poder quanto dos seus destinatários. Especialmente a maturidade de entender que somente com liberdade é que se alcança o fim último do Estado, qual seja, a promoção do bem comum do corpo político, como diria o filósofo Jacques Maritain, um dos teóricos que inspiraram o Título II da Constituição brasileira.
Olhar para a teologia, que é a forma racional como determinado grupo de pessoas enxerga o fenômeno transcendental, é um exercício difícil ao vislumbrar diferenças do seu próprio senso a respeito do tema. Afinal, quem pensa diferente de mim, a princípio, está “errado”; logo, torna-se penoso imaginar que o outro deva ter o mesmo espaço que eu no “mercado” das ideias religiosas. No fim das contas, como diz nosso amigo e colega colunista Francisco Razzo em seu livro, temos todos uma “imaginação totalitária”.
Assim, quando um pastor diz que está “semeando” uma quantia financeira em um propósito de fé, materializado (simbolizado) por sementes de feijão, e que há relatos de pessoas que, diante de um propósito semelhante, foram curadas de doenças – no caso, a Covid-19 –, tal deve ser tratado com respeito semelhante ao outro que encomenda (mediante uma oferta financeira) uma missa em intenção da alma de um querido seu, ou quem faz uma oferenda a entidade espiritual em ritual de matriz africana. A dimensão espiritual da existência exige respeito e a Constituição brasileira tributa este respeito, mas uma parcela da população, por intolerância, às vezes não o faz.
Portanto, quando Lula diz que “não é função das igrejas” fazer coisas como “vender semente de feijão”, está lançando um olhar preconceituoso com relação à livre manifestação de uma fé religiosa, cujo captar dos corações merece respeito desde que o direito natural e as liberdades civis fundamentais sejam respeitados. Anda mal o ex-presidente quando imputa um olhar reprovador e intolerante a uma expressão da diversidade religiosa existente no país.
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Na continuidade de seu discurso, Lula seguiu criticando o fato de as igrejas fazerem “culto cheio de gente sem máscara, dizendo que têm o remédio pra sarar”. Faz ainda uma declaração sobre sua fé dizendo que Jesus pode ajudar quem se ajuda. O ponto aqui é a crítica aberta às igrejas, não a algumas igrejas, o que seria mais apropriado. O fato aqui é a perigosa mistura entre política e religião – de amplo espectro entre a esquerda e a direita, onde há politização da fé e espiritualização da política.
Lula sinaliza que 2022 tem mais religião em debate na arena pública. Esperamos, sinceramente, que a discussão seja madura, pois assim a democracia constitucional brasileira demanda e a sociedade merece.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos