Alguns dias depois do julgamento no STF sobre a possibilidade de proibição de cultos presenciais por decretos estaduais e municipais, já podemos ouvir ecos e consequências do “entendimento” de Suas Excelências. Em algum momento voltaremos à carga com um comentário mais detido sobre os votos de cada ministro naquelas duas sessões, que, infelizmente, abrem um precedente muito perigoso para a liberdade religiosa – a primeira das liberdades civis fundamentais – e , a partir disso, para a própria democracia.
O primeiro efeito direto foi sentido já em São Paulo, estado que originou a ADPF 811, pelo decreto do governador João Doria que havia, na bandeira preta, proibido o culto presencial. Logo na semana seguinte ao julgamento, em que houve uma volta à bandeira vermelha, abrindo estádios de futebol e outros locais, manteve-se as igrejas fechadas, em um uso prático do julgamento do Supremo a respeito do tema. Esta decisão mostra uma certa queda de braço política, todos sabemos, mas o nosso foco aqui não é politizar a religião, e sim ocupar – no espaço de liberdade democrática que ainda nos resta – posição de demonstrá-la como plenamente compatível com a arena pública na atual ordem constitucional. O segundo, já anunciado no julgamento da semana passada, foi a reversão da liminar concedida pelo ministro Nunes Marques na ADPF 701, alinhando-se, pelo princípio da colegialidade, ao entendimento do plenário.
A liberdade religiosa, na visão do constituinte originário de 1988, é uma liberdade pública, com uma dimensão de obrigação do Estado de protegê-la
O revelador, porém, é observar as diferentes reações ao assunto, seja por comentários, seja por opiniões escritas. Tem-se uma clara tensão no ar, justamente por aquilo a que não pretendemos dar eco e contorno – a manipulação política do elemento religioso, como se tudo fosse sempre uma disputa de poder e dominação, tendo a religião como veículo de “sedução” ou “submissão”.
Ainda vivemos em uma sociedade política, cuja Constituição declara como um de seus fundamentos o pluralismo político; razões políticas “em nome de Deus”, embora questionáveis sob determinadas lentes teológicas, não podem simplesmente ser consideradas inadequadas a partir da análise jurídica. Há, sim, espaço para que questões públicas possam ter aportes de fé na formulação de soluções. Como diria o filósofo Jacques Maritain, o importante para a convergência é que haja um acordo pragmático sobre o que seja o bem comum, e que todos queiram atingi-lo. As motivações de um e de outro para tanto, embora válidas, não são o núcleo, mas o fim da promoção deste interesse de todos, do chamado interesse público. Esta é, em síntese, a essência do chamado Estado laico na atual Constituição de 1988.
Porém, várias são as vozes – infelizmente ecoadas em alguns votos de ministros – a respeito de uma laicidade que em nada se assemelha com a nossa experiência única no Brasil. Sempre (e de novo) tentam enquadrar a fé religiosa em um corner de mera tolerância, tentando dizer que “religião não se discute”, e que os argumentos religiosos devem apenas guardar relação com a vida privada de cada indivíduo. Esquecem-se de que a liberdade religiosa, na visão do constituinte originário de 1988 – e de todos aqueles que não têm o laicismo francês ou o secularismo chinês impregnado em seus poros –, é uma liberdade pública, com uma dimensão de obrigação do Estado de protegê-la, mesmo que a maioria individual das pessoas abandonassem a fé, o que, aliás, está bem longe de acontecer, dado que 92% da população brasileira é crente de alguma matriz religiosa, com 88% declarando-se em alguma tradição cristã.
O laicismo, essa moda afrancesada de tratar a religião e, consequentemente, os religiosos como sendo intelectualmente inferiores, por não terem sido “iluminados” pela razão, encontra muitos amigos pelo Brasil. É certo que o positivismo – aquele de Auguste Comte, que inspirou a teoria política republicana entre nós – teve nestas terras solo bastante fértil para as experiências sociais da modernidade do século 20, buscando provar a tese de que qualquer coisa que não passasse pelo crivo do método científico estava relegado ao ostracismo. Ou, no caso da fé, à esfera privada, sem chance de ter uma voz para contribuir com a busca da felicidade geral, ou o bem comum, que “consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”, no dizer do papa João XXIII, na encíclia Pacem in Terris, parágrafo 58.
A visão de mundo que suporta o laicismo e a secularização da sociedade é aquela mesma que se vê nas palavras do próprio ministro Luís Roberto Barroso, que, em entrevista no ano passado, disse diretamente que talvez uma das boas coisas resultantes da pandemia tenha sido um resgate dos valores iluministas: “ciência, razão, humanismo e progresso para todos”. Lembremos mais ainda, quando de sua sabatina pelo Senado para a posição que hoje ocupa. Quando instado a falar sobre a relação Igreja e Estado, foi enfático ao dizer: “Primeiro, acho que a religião é um espaço da vida privada. Merece todo o respeito, mas é um espaço da vida privada. Eu não gostaria de fazer esse debate no espaço público”. Esta é a posição de quem pensa ser o Estado laico um Estado secular, o que não encontra correspondência no modelo colaborativo brasileiro.
O positivismo teve nestas terras solo bastante fértil para as experiências sociais da modernidade do século 20, buscando provar a tese de que qualquer coisa que não passasse pelo crivo do método científico estava relegado ao ostracismo ou, no caso da fé, à esfera privada
Faltam-nos muitas milhas ainda para fortalecermos a jovem democracia brasileira. Sabemos como a política é etérea, com a consistência de uma nuvem, sempre em mudança, como diria nosso amigo Tércio Tokano. Porém algumas coisas são pilares fundamentais de uma civilização como a ocidental, fruto da luta (e do sangue) de muitas gerações: a primeira é a defesa do ser humano em todas as dimensões da existência, porque este é dotado de dignidade intrínseca; a segunda é fruto da modernidade, a igual consideração pela pluralidade de ideias. E isto pressupõe também aquelas baseadas em profundas convicções religiosas, que imprimem visão de mundo e filosofia de vida, tão legítimas para contribuírem na esfera pública – a livre arena de ideias – quanto as que expressem uma visão desprovida de valores transcendentais.
Assim sendo, somente podemos concluir que julgamentos como o da ADPF 811, em que o Estado se arroga o direito de suprimir uma liberdade fundamental em sua dimensão pública, fere o comando claro da Constituição, que fez da suprema corte justamente sua guardiã. Ao fazê-lo, dando azo a fundamentações iluministas que não suportam o espírito com o qual o constituinte originário pensou a relação da laicidade brasileira, é que se vê o perigo à concretização do princípio democrático, essencial no Estado de Direito, que demanda respeito às leis, estabilidade das instituições e limitação do poder estatal para que a busca da felicidade seja possível. Seguimos observando.
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