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Há alguns dias a religião foi assunto na tal “casa mais vigiada do Brasil”, o (famigerado) Big Brother Brasil, transmitido pela Rede Globo. Após uma situação que foi vista como ato de intolerância religiosa, o apresentador Tadeu Schmidt deu voz a um dos participantes, para que explicasse sua tradição religiosa – no caso, o ifaismo. Esta é uma tradição religiosa oral, identificada com a cultura iorubá (na região da atual Nigéria), expressa em poesias transmitidas geracionalmente, de matriz deísta, o que a confunde com outras manifestações como o candomblé.
O ponto que queremos destacar parte da fala do apresentador para dar o editorial da emissora a respeito do tema:
“Aqui tem católico, tem evangélico, tem gente que acredita em tudo, gente que não tem religião, tem gente que pratica, tem gente que não pratica religião. Cada um com sua crença, e respeito tem que estar acima de tudo. Todas as religiões têm o nosso respeito. Todas. Nenhuma religião é melhor do que as outras, nenhuma religião é pior do que as outras, não tem religião do bem e religião do mal. Todas têm os mesmos direitos, todas têm a nossa admiração. É assim no Brasil, é assim no BBB.”
Somente pode haver diversidade religiosa verdadeira onde antes há liberdade religiosa para o indivíduo adotar, praticar, fazer proselitismo e mudar de religião sempre que a consciência – jamais o Estado, ou qualquer outra pessoa – disso o convencer
Nesta fala enxergamos dois conceitos distintos, mas intercambiáveis, especialmente no contexto cultural brasileiro: a liberdade religiosa e a diversidade religiosa. A primeira se refere ao exercício (action) de uma crença (belief) religiosa, na qual se verifica a tríade Divindade/Moralidade/Culto, como já falamos anteriormente. Este exercício, no Brasil, deve ser protegido da interferência do Estado ou de terceiros, encontrando limite natural na liberdade religiosa institucional de comunidades de fé, ou mesmo de indivíduos em suas práticas. É um direito fundamental, verdadeiro fio condutor da democracia e do rule of law, pois somente a partir da resposta à transcendência é que a experiência humana se aperfeiçoa no convívio comunitário.
Já a segunda diz respeito à verificação da existência de múltiplas crenças e práticas religiosas em determinada sociedade. É o corolário, a decorrência natural de um ambiente onde a liberdade se verifica como regra. É um fenômeno social observado especialmente onde a característica cultural é de pluralidade, coisa que o Brasil entende muito bem.
Nosso país é a síntese absoluta do espírito que formou nossos pais fundadores, os portugueses. A formação lusitana já era um encontro interessante entre a Europa e a África, uma disputa religiosa entre cristãos e muçulmanos, uma diversidade que criou simbioses linguísticas (há influência árabe, espanhola, latina e germânica em nossa língua). Ao aportar no Brasil, somou-se a fértil cultura indígena, tanto em língua quanto em costumes e religião.
Como se observa na história, o cristianismo foi a força valorativa que permitiu que o impulso civilizatório iniciado pelos romanos fosse de fato duradouro. O verniz normativo que eles criaram foi preenchido com a moralidade judaico-cristã e a investigação racional grega, dando origem ao mundo como o conhecemos. A liberdade religiosa – inclusive de adotar visões de mundo a partir da revelação de verdades absolutas – foi possível neste contexto, cuja gestação da modernidade repousava justamente ao tempo em que as caravelas aportaram aqui na Terra de Santa Cruz.
O desafio do respeito à diversidade estabelecida livremente não é algo novo. Antes de o cristianismo ser uma “religião predominante”, o uso político do aparelho religioso sempre permitiu aos governantes estabelecerem domínio de forma a esmagar qualquer tentativa de manifestações de espiritualidade rivais às do chefe da tribo ou nação. E, fora do ocidente, isto ainda é realidade visível atualmente.
Portanto, somente pode haver diversidade religiosa verdadeira onde antes há liberdade religiosa para o indivíduo adotar, praticar, fazer proselitismo e mudar de religião sempre que a consciência – jamais o Estado, ou qualquer outra pessoa – disso o convencer. A religião está para além da simples identificação étnica ou cultural. É uma resposta de como viver esta existência a partir de sua visão do além-túmulo, para conformar a conduta humana – posto que somos seres morais.
Adotar o sincretismo do “todas as religiões são igualmente boas” pode ser um bom discurso de afirmação forçada da diversidade, mas não irá fortalecer a liberdade religiosa
Todas as religiões que, manifestamente, buscam o bem comum devem ter seu espaço garantido na arena pública. Que as ideias transitem livremente, e as pessoas façam seus compromissos de consciência, tendo o direito de tentar levar seus semelhantes à mesma identificação. Isto é tolerância religiosa com respeito às verdades absolutas pregadas por muitas delas.
Dizer que alguém “vai para o inferno” se continuar com determinada conduta é, antes de tudo, um ato de amor pelo próximo, não de ódio. Dizer que a minha religião é a única certa não é uma ofensa em si – afinal, discutimos ideias e crenças, não pessoas; estas devem ser respeitadas e amadas. Ofender é diminuir essencialmente o outro; querer o seu bem a partir de sua visão religiosa nunca poderia ser considerado uma ofensa.
Adotar o sincretismo do “todas as religiões são igualmente boas” pode ser um bom discurso de afirmação forçada da diversidade, mas não irá fortalecer a liberdade religiosa. Esta se afirma com respeito pelas diferenças – por vezes irreconciliáveis –, mas igualmente dignas de serem expostas ao escrutínio e escolha de cada um.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos