O fechamento total de templos de qualquer culto parece o mais novo desiderato de muitos; se não fecham, a culpa é deles, dos religiosos. Procuram uma exceção, uma apenas, para então gritarem aos quatro cantos, apontando os dedos: igreja aberta! igreja aberta! Mas, diferentemente desta realidade, milhares de líderes religiosos determinaram a suspensão dos cultos comunitários em substituição pela via digital. Muitos, antes mesmo de qualquer obrigação legal, fizeram-no por amor ao próximo.
A dignidade da pessoa humana, como ensina Jacques Maritain em O homem e o Estado, é o fundamento da democracia, a pedra angular sobre a qual todas as liberdades e direitos fundamentais do homem se assentam. Os direitos fundamentais e a dignidade humana preexistem ao próprio Estado, que deve se orientar e se organizar em obediência aos mesmos, conforme bem estabelece o artigo 1.º da Constituição brasileira.
A suspensão temporária de cultos, em sua expressão comunitária, é uma demonstração do princípio da lei natural e, consequentemente, da dignidade humana e dos direitos fundamentais: “o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve ser evitado”, afirma Tomás de Aquino na Suma Teológica (I-II, questão 94, artigo 2.º). Como a lei natural é aplicável para todos e em todos os lugares (Suma Teológica, I-II, questão 91, artigo 5.º), assim os líderes eclesiásticos têm feito, embora exceções existam e devem ser tratadas e punidas como tais. “Pois, quando você julga em concordância com o amor, facilmente distinguirá e decidirá todas as coisas, sem códigos de leis. Mas, se afastar as leis do amor e da natureza, jamais descobrirá o que é agradável a Deus, ainda que tenha engolido todos os livros de leis e todos os jurisconsultos”, escreveu Lutero em Sobre a autoridade secular.
O exercício da fé não pode ser atingindo, sob pena de solaparmos a dignidade humana e a própria vida
Podemos citar alguns exemplos de atendimento à lei natural: o primeiro, a decisão sóbria do arcebispo cardeal dom Orani João Tempesta, da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, que desobrigou os fiéis a participar das missas dominicais – mas não suspendeu a celebração das missas. O segundo, a Igreja Batista Filadélfia de Canoas (RS), que determinou, a partir de seu pastor, Gilberto dos Santos Silva, a suspensão dos cultos presenciais com a manutenção das atividades de assistência social da igreja, bem como a realização de cultos on-line, de forma diária. Terceiro exemplo, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil teve o cuidado de direcionar suas atividades (editora, centro administrativo e outros) por home office, e disponibilizou os cultos e materiais de estudo de forma on-line. Outras igrejas estão seguindo a ideia de promover a dignidade da pessoa humana e manter seus cultos de forma digital enquanto perdurarem os riscos da pandemia; citamos apenas três exemplos.
O fato é que a fé é essencial ao ser humano. Não é à toa que as perguntas existenciais são respondidas mais satisfatoriamente pela religião: quem somos, de onde viemos e para onde vamos. O exercício da fé não pode ser atingindo, sob pena de solaparmos a dignidade humana e a própria vida. O Estado precisa garantir que os brasileiros tenham suas inquietações e crises atendidas também pela esfera transcendental e, neste passo, os templos não podem ser fechados. Os cultos e outros atos litúrgicos que promovem aglomeração devem ser suspensos, mas a atividade religiosa deve ser mantida, porque é essencial ao ser humano.
Neste caminho, com o intuito de garantir que o sentimento religioso permaneça fluindo no coração dos fiéis, o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, incluiu as atividades religiosas na lista de serviços essenciais por meio do Decreto 10.292/20, que atualiza lista constante no Decreto 10.282/20. Ambos os decretos são contemplados na Lei 13.979/20, que estabelece as ações federais, estaduais e municipais de enfrentamento ao Covid-19. O Decreto 10.282/20 estabelece: “Art. 3.º As medidas previstas na Lei 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1.º”.
Além de reconhecer o óbvio, que a atividade religiosa é essencial ao ser humano, o decreto visa dirimir dúvidas sobre o funcionamento dos templos e impedir o alto número de equívocos de prefeitos, como em Fortaleza, por exemplo, onde os pastores estão a ser impedidos de transmitir cultos on-line (mesmo sem aglomeração, sozinhos com uma câmera no templo – um dos casos aconteceu na Igreja Anglicana). Em Poços de Caldas (MG), o ministro religioso foi impedido por fiscais municipais de continuar a celebração.
Enquanto isso assistimos, de nossa quarentena, à Justiça Federal fluminense determinando a anulação do decreto de Bolsonaro e ordenando que o mesmo não mais editasse este tipo de norma, criando categorias que sejam consideradas serviços essenciais no combate à pandemia; o curioso, porém, foi o “fundamento jurídico” usado pelo Ministério Público Federal de Duque de Caxias (RJ): disse que os critérios para definir a lista de atividades essenciais seriam encontrados na Lei 7.783/89. Acontece que esta é... a Lei de Greve.
Ninguém precisa ser advogado ou jurista para entender que o contexto de uma greve não se enquadra na estrutura de uma organização religiosa. Você conhece algum sindicato de padres? Ou dos pastores? Claro que não! Isto porque a figura da liderança eclesiástica carrega a transcendência em sua natureza, o que não se assemelha a um profissional do mercado de trabalho. Por outro lado, existe uma lei especial para enfrentar a pandemia do coronavírus; por que, então, “usaríamos” legislação referente ao exercício de greve? Ademais, a crise não pode ser usada como justificativa para impedir que a Presidência decrete o óbvio: o sentimento religioso deve ser protegido e bem administrado. O Estado brasileiro não está acima do fenômeno religioso, em toda a sua extensão de lentes teológicas ou expressões de fé; ao contrário: ambos, poder civil e religioso, colaboram pelo bem comum em suas respectivas áreas de atuação – e ambos servem à Constituição.
A crise não pode ser usada como justificativa para impedir que a Presidência decrete o óbvio: o sentimento religioso deve ser protegido e bem administrado
Com a decisão judicial ora comentada, caracterizou-se uma clara ofensa ao princípio clássico da separação dos poderes, conforme ensinado desde o início da modernidade por Montesquieu, e também da laicidade. Passo seguinte, as medidas de restrição de um simples culto on-line ganharam “gás” em todo o Brasil. Felizmente a duração desta incorreção foi curta: em menos de 72 horas foi cassada pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, atendendo a um pedido de suspensão de liminar da Advocacia-Geral da União, no sentido de que as atividades religiosas continuassem a ser definidas como atividade essencial.
Quando um estado (segundo nível da Federação) ou município (terceiro nível) utiliza servidores públicos para proibir que um líder religioso transmita um culto virtual em tempos de isolamento social – momento de extrema fragilidade da sociedade, forçada a fazer algo totalmente estranho ao natural, que é justamente o congraçamento, a comunhão, o estar junto –, solapa a dignidade da pessoa humana e desrespeita o sagrado.
É inegável que o ambiente de liberdade religiosa coopera com o combate à Covid-19 quando os líderes eclesiásticos compreendem a necessidade de isolamento e de medidas de contenção para não permitirem aglomerações. A igreja acalma ânimos exaltados, consola corações aflitos, dá exemplo de solidariedade e permite que a cidadania seja exercitada de maneira muito mais eficaz que outras instituições da sociedade, em momentos de crise. E é exatamente este o ponto do modelo brasileiro de laicidade, como está escrito no artigo 19, I, da Constituição.
Se um lado bom pode haver nesta crise atual, é que fica completamente claro que o ser humano não existe de forma plena em algum estado independente, e que só compartilha da sociedade por alguma espécie de contrato; nem que apenas serve para viver caso seja útil em algum projeto coletivo, que lhe nega a liberdade individual de perseguir o bem ou a responsabilização por causar algum mal. Somos criaturas sociais, existimos não somente para “vivermos”, mas, muito além, para “convivermos”. Esta é uma aliança natural, pois nossas fragilidades e limitações como espécie são evidentes, desde o nascimento até a morte, passando por momentos como os atuais.
E é exatamente por esse motivo que o desembargador federal Reis Friede destacou que “o decreto presidencial foi cauteloso ao prever que as atividades religiosas de qualquer natureza só poderão ser realizadas se obedecerem às determinações do Ministério da Saúde”. Também explica que pertence ao Congresso Nacional a competência para sustar atos normativos da Presidência (segundo o artigo 49, inciso V, da Constituição), fato este que indica a incompetência da Justiça Federal de Duque de Caxias para impedir a inclusão de atividades religiosas como atividade essencial no processo 5002992-50.2020.4.02.0000: “Portanto a decisão liminar em epígrafe contraria aquele postulado constitucional e se revela ilegítima, na medida em que, indevidamente, se imiscui em análise acerca de suposta exorbitância do poder regulamentar do Exmo Sr. Presidente da República quando da edição do Decreto 10.292/2020”.
Por isso, assinalamos que as organizações religiosas devem manter a consciência de que é tempo atípico no qual aglomerações devem ser realmente evitadas, em prol da preservação da vida e da dignidade da pessoa humana. A palavra de esperança que flui da boca dos líderes religiosos pode correr pelas vias que temos hoje, quer seja pela internet, quer seja pelo processo de aconselhamento e confissão. É possível agir em prol da saúde pública e não sufocar o sentimento religioso.
Aos líderes eclesiásticos, entendemos que é tempo de agir com sabedoria, e cooperar com o poder público, nos moldes de nossa laicidade colaborativa. Tomar as medidas necessárias no quesito de higienização, investir nas plataformas on-line, e denunciar se, mesmo atendendo as medidas do Ministério da Saúde, forem impedidos pela administração pública, de dar continuidade às atividades religiosas. A cooperação é mútua, e não unilateral.
A religião é essencial para a pessoa humana, e estaremos de olho se alguém disser o contrário, inflamados por um ardor inconstitucional.
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