(Artigo escrito especialmente para esta coluna por John de Miranda)
Há poucos dias um caso monstruoso e perturbador veio à tona como que para complementar as tantas provações que essa pandemia tem imposto sobre nós: o país inteiro tomou conhecimento da tragédia envolvendo uma criança de apenas 10 anos de idade, vítima de pedofilia e estupro por parte de certo crápula que, por vínculo sanguíneo, consta como seu próprio tio; criança essa que, por ocasião da referida atrocidade, acabou grávida. Não fosse tragédia o suficiente, o caso veio à tona só agora, quando a gestação da menina já datava de cinco meses! Por um momento todas as pessoas normais e decentes puderam compartilhar sentimentos genuinamente humanos, tais como ira mortal contra o pedófilo e estuprador; visceral compaixão pela vítima – mero anjo inocente –; lamento inconsolável pela tragédia que a situação toda representou.
Contudo, esse clima de consenso foi quase imediatamente desfeito tão logo se passou a considerar a possibilidade de realizar um aborto na menina, e eis que se instaurou um cenário de guerra. Grupos pró-vida se insurgiram contra o abortamento – afinal, nem mesmo a legislação vigente sobre o assunto permitiria tal desfecho, já que ela prevê a possibilidade de aborto em caso de estupro, mas apenas até o terceiro mês de gestação. Em contrapartida, grupos pró-aborto mobilizaram-se para fazer a coisa acontecer – e, em verdade, conseguiram êxito, já que encontram médico abortista disposto a ir mesmo contra a legislação vigente para praticar o aborto na pobre menina. O aborto foi realizado. Diante disso, as redes sociais e as mídias em geral se viram num acalorado debate a respeito de diversas questões, como a pena de morte para semelhantes crimes atrozes, a castração química para pedófilos, a legalização do aborto em qualquer caso e a velha e boa laicidade do Estado. É sobre a última questão que desejo debruçar-me.
“O Estado é laico e nossos corpos também são!!”, declarou a atriz Regiane Alves, no Twitter, ao comentar o terrível caso da menina estuprada.
Esse tipo de alegação é recorrente por parte de pessoas e grupos de esquerda nas redes sociais. Mas a verdade é que mesmo na esfera acadêmica é comum presenciarmos defensores do aborto alegando que a tese pró-vida é apenas ou fundamentalmente de natureza religiosa – sendo, portanto, contrária à laicidade do Estado, isto é, à separação jurídico-institucional entre Estado e religião. Ronald Dworkin, influente filósofo do direito e entusiasta da tese pró-aborto, chegou a afirmar, em Life’s Dominion, que o debate atual sobre aborto é uma versão atualizada das guerras religiosas do século 17.
Contudo, basta um pouco de pensamento analítico para notar que semelhantes caracterizações do problema, em que se procura reduzi-lo a um debate do tipo “religiosos versus não religiosos”, são no mínimo inadequadas. É claro que o aborto também é um problema de interesse religioso. Sabe-se que a religião cristã tradicional, por exemplo, é contra o aborto. Assim também o espiritismo kardecista. Por contraste, há religiões espiritualistas e de matriz africana que não se opõem a tal prática. Agora, é evidente que tais fatos não nos habilitam a concluir que só existem teses religiosas com respeito ao aborto. Na verdade, o problema do aborto se espraia por diversos campos de análise, tais como religião, filosofia, direito, sociologia e saúde pública.
Desta maneira, toda discussão sobre o aborto precisa esclarecer por que foca este ou aquele aspecto do problema e não outro(s). Não apenas isso: tem de pontuar, também, qual dentre tais aspectos todos será tomado como normativamente básico e por quê. De fato, é esse tipo de sistematização que garantirá a correta compreensão e análise do problema – apta a desfazer aquelas caracterizações inadequadas e distorcidas mencionadas acima, segundo as quais a crítica do aborto se restringe à religião e por isso fere a laicidade do Estado.
O problema do aborto se espraia por diversos campos de análise, tais como religião, filosofia, direito, sociologia e saúde pública
Mas o que significa isso de “pontuar aspectos normativamente básicos”? Conforme indiquei há pouco, esse passo é crucial para a correta compreensão e análise do problema do aborto – e, na verdade, para qualquer outro problema. Vimos que o aborto pode, sim, ser discutido pelas religiões; não apenas isso: ele pode ser alvo, por exemplo, também de uma discussão no campo da saúde pública, pois são muitas as mulheres que realizam aborto em condições precárias e acabam demandando cuidados da rede pública de saúde (sendo que muitas nem a isso chegam, pois infelizmente acabam falecendo). Mas é preciso identificar quais são os aspectos “nucleares” dessas e de outras situações que envolvem o aborto; isto é, os aspectos que são mais fundamentais em termos de valores e princípios (que são ‘normativamente básicos’).
Ora, conforme argumenta a maioria dos autores que discutem tecnicamente o caso do aborto, os aspectos realmente básicos aí são relativos aos conceitos de pessoalidade humana, dignidade da pessoa humana e direitos humanos. Em síntese: considera-se que o cerne da questão diz respeito às pessoas e aos direitos a elas relacionados*. Que a mãe seja uma pessoa humana está claro – daí as discussões em torno da liberdade e saúde das mulheres, das mães, geralmente voltadas ao suposto direito de abortar. Mas há de perguntar também se o que está dentro do ventre materno – e que se quer matar no aborto – é uma pessoa humana. São o embrião e o feto pessoas humanas?
Note-se que as defesas do aborto, especialmente feitas por movimentos feministas, costumam negligenciar a possibilidade de o embrião e o feto serem pessoas humanas. Mas é exatamente a essa possibilidade que os críticos do aborto atentam: para eles, se a consideramos com a devida seriedade, somos inevitavelmente levados à conclusão de que o embrião e o feto são pessoas humanas, dotadas de dignidade e direitos (como o direito à vida). Se o embrião e o feto realmente forem pessoas humanas, então o aborto, em que se quer matá-los intencionalmente, será o mesmo que assassinato. E desta maneira fica clara a inadequação de dizer, por exemplo, que o aborto é fundamentalmente uma questão de liberdade e direitos da mulher que está grávida, pois pode ser que o indivíduo que ela carrega dentro da barriga também seja uma pessoa dotada de dignidade e direitos. Por conseguinte, deve ficar igualmente claro que tudo depende da resposta para a pergunta sobre quem são as pessoas humanas (dotadas de dignidade e direitos) que estão envolvidas no aborto: será só a mãe, ou também o nascituro?
Poderemos, é claro, pensar o problema da saúde pública em paralelo e esse problema filosófico e jurídico mais fundamental: pois mesmo que concordássemos sobre se o embrião/feto é pessoa ou não – por exemplo, descobrindo que ele é, sim, uma pessoa –, é provável que ainda assim continuariam ocorrendo abortos clandestinos e havendo demandas na saúde pública. Quer dizer: mesmo que tivéssemos relativa certeza sobre o status do aborto como um ato realmente criminoso, muito provavelmente continuariam acontecendo abortos, muitos deles clandestinos e dispendiosos para a saúde pública. Evidentemente, nesse sentido o aborto seguiria sendo também um problema de saúde pública. E o contrário é igualmente possível: se descobríssemos que o aborto não é crime, seguiria a questão sobre o papel do Estado em prover assistência a essa demanda de saúde. Mas vejamos que nada disso muda o fato de que o aborto pode, sim, ser um assassinato. E essa possibilidade, por menor que seja, faz com que voltemos os olhares para a questão da pessoalidade do embrião/feto. Logo, é a pessoalidade, tanto da mãe quanto do nascituro, que estão fundamentalmente em jogo no problema do aborto.
E aqui fica fácil resolver a questão inicialmente aventada, relembrando: a alegação de que a crítica ao aborto é mera questão de religião, sendo desta maneira contrária à laicidade do Estado. O leitor desta coluna sabe bem da importância que a liberdade religiosa tem para as demais liberdades e para a própria noção de dignidade humana. Mas para ele está igualmente clara a possibilidade de compreender essa noção, também, nos termos da razão natural, sem a necessidade de recorrer a textos religiosos e obras de teologia.
O conceito de dignidade da pessoa é, sim, devedor da tradição judaico-cristã. Mas sua verdade é de tal maneira evidente que ele não precisa de textos sagrados para ser entendido e endossado. Basta a razão natural e tal conceito é de pronto apreendido. Ele pode ser suplementado com uma visão mais profunda das coisas: uma que remonte até a origem do mundo e os intentos de Seu criador. Mas, para fins jurídico-institucionais, basta que a própria razão natural e comum testemunhe que toda pessoa humana tem dignidade e direitos. Ateus, agnósticos e religiosos concordam sobre isso! Se forem normais e decentes, também concordarão que é errado estuprar uma criança. Nenhum texto sagrado precisa ser invocado para se ter consenso sobre essa e outras questões relativas à dignidade da pessoa humana.
O conceito de dignidade da pessoa é, sim, devedor da tradição judaico-cristã. Mas sua verdade é de tal maneira evidente que ele não precisa de textos sagrados para ser entendido e endossado
E aqui finalmente fica refutada a alegação de que a crítica ao aborto se resume a uma posição religiosa: pois, conforme dito mais cedo, o que realmente importa é saber se o nascituro também é uma pessoa humana; e, conforme visto agora por último, a resposta para esta questão não precisa envolver bases religiosas e nem ferir a laicidade do Estado.
* Para uma visão técnica, científica e acadêmica do assunto, consulte-se, por exemplo: Grisez, Germain. Abortion: the Myths, the Realities, the Arguments. New York: Corpus Books, 1970; Cohen, Marshall (ed.). The Rights and Wrongs of Abortion. Princeton: Princeton University Press, 1974; Singer, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002, cap. 6; George, Robert P.; Lee, Patrick. Body-Self Dualism in Contemporary Ethics and Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, cap. 4; Finnis, John Mitchell. “When Most People Begin” In: Finnis, John Mitchell. Intention and Identity. Oxford: Oxford University Press, 2011.
John de Miranda, bacharel, mestre e doutor em Filosofia, é vice-diretor da regional RS da associação Docentes Pela Liberdade (DPL), segundo-vice-presidente do think tank Clube Austral e editor-assistente da revista on-line Seara Filosófica (UFPel).
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS