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Crônicas de um Estado laico

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STF

Nestas eleições, diga “não” ao aborto

André Mendonça relatou caso que envolvia pedido de aborto de fetos xifópagos. (Foto: Carlos Moura/SCO/STF)

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Nesta semana tivemos o desfecho do Habeas Corpus 220431, impetrado em 23 de setembro de 2022 perante o Supremo Tribunal Federal. O chamado “remédio heroico” (o habeas corpus tem diversos nomes interessantes; veremos alguns deles neste artigo) veio pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul em razão de uma gestação de risco envolvendo gêmeos siameses – xifópagos. Ressalte-se desde já que, como a controvérsia envolve um alegado risco de vida à mãe pela gestação, não trata de privação de liberdade – circunstância que enseja este tipo de ação judicial que, inclusive, nem precisa de um advogado para ser ministrada. Então, de início, fica patente que esta via está formalmente errada.

O caso que deu origem a este HC já havia sido negado no STJ, onde havia sido impetrado por outros motivos. Também foi negado no juízo local, diga-se de passagem, e ainda está pendente de julgamento no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Assim, para o STF julgar tal HC, se fosse o caso, teria de suprimir diversas instâncias jurisdicionais. Mas, no Brasil, ainda existe (quem sabe) Estado de Direito.

O juiz de primeiro grau, ou seja, o juiz da cidade onde reside a mãe dos gêmeos (no caso, Porto Alegre), negou o alvará para liberar o assassinato no ventre – quer dizer, o aborto (ou o politicamente correto “interrupção da gestação”) –, pois entendeu, analisando provas e evidências científicas, que inexistia qualquer comprovação de risco iminente e concreto à gestante. Esta é uma das hipóteses, além do estupro, em que o aborto não é punido no Brasil, mesmo sendo crime; na ADPF 54, o STF descriminalizou apenas o aborto em caso de anencefalia comprovada. Ou seja, não é porque as crianças no ventre são xifópagas é que se pode matá-las.

Ontem, foram os anencéfalos; hoje, podem ser os xifópagos; amanhã, qual será a comorbidade que autorizará o aborto?

É evidente que estamos diante de um caso complexo e extremamente delicado; de qualquer forma, o aborto nada mais é que tirar a vida do feto via intervenção de um terceiro. Ontem, foram os anencéfalos; hoje, podem ser os xifópagos; amanhã, qual será a comorbidade que autorizará o aborto? Em países como a Islândia não existem mais crianças com Síndrome de Down; este é o caminho que se quer para o Brasil?

Em 29 de setembro, o ministro André Mendonça negou seguimento ao remédio constitucional impetrado pela Defensoria Pública. Primeiro, porque não seria caso de HC; segundo, porque o juiz local não cometeu nenhuma ilegalidade, muito antes pelo contrário, cumpriu a lei; terceiro, porque não existe previsão legal para o aborto requerido. A Defensoria Pública gaúcha, não satisfeita com a manutenção da vida dos gêmeos, interpôs agravo regimental. Com este recurso, o processo “saiu” das mãos de Mendonça para ser julgado pela Segunda Turma do STF, composta também por Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Nunes Marques e Edson Fachin. Ao prolatar o primeiro voto, o relator Mendonça diz “não” ao aborto, mas antes explica o argumento da defensoria:

“A parte agravante esclarece não ser caso que se amolda à excludente do art. 128, inc. I, do CP, por não envolver ‘risco de morte imediato à gestante, mas de riscos já existentes e que se agravam à medida que o tempo passa’, aduzindo sua pretensão pela ‘criminalização em potencial de uma conduta medicamente recomendada’. (e-doc. 8) Assim, a conduta em espeque não teria suporte legal.”

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Ou seja, o próprio requerente do aborto reconhece que o caso não se amolda à legislação penal, mas capitula dizendo haver riscos que se agravam, conforme o “tempo passa”. Como assim? Vejam como responde o ministro Mendonça (o destaque é do próprio ministro):

“Não cabe ao Poder Judiciário ser previamente consultado sobre a probabilística configuração de um crime. As instâncias antecedentes deixaram de apreciar o mérito do writ pela complexidade que envolve a interrupção terapêutica da gravidez fora das hipóteses legais, circunstância incompatível com os limites e o escopo da medida formalizada.”

E Mendonça arremata:

“Assim, tendo em vista a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assentada a evidente inadequação da via eleita, em síntese, não vislumbro elementos de convicção capazes de alterar a fundamentação da decisão agravada: (i) pela ausência de previsão legal da hipótese de aborto pela possível inviabilidade de vida extrauterina de fetos siameses; (ii) pela não aderência da tutela pleiteada ao objeto da ADPF 54/DF, relativo à condição clínica de feto anencéfalo; e (iii) pela desnecessidade de autorização judicial para interrupção terapêutica da gestação, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, uma vez constituir hipótese legal de excludente de ilicitude (art. 128, inc. I, do Código Penal).”

Dizer que o caso de fetos siameses se adequa ao do anencéfalo, e por isso eles podem ser abortados, é um salto lógico imenso

As vidas dos gêmeos, então, estão salvas? Ainda não: eis que surge o voto divergente do ministro Edson Fachin, aquele mesmo que, em sua sabatina no Senado antes de sua aprovação, afirmou explicitamente ser contra a legalização do aborto. Assim como fizera seu colega Roberto Barroso ao devolver liminarmente o mandato ao vereador curitibano e invasor de igrejas Renato Freitas, Fachin inicia rompendo os “paradigmas processuais”. Afinal, para que regras processuais ou necessidade de não supressão de instâncias ou o nosso próprio entendimento, se o que importa é liberar o aborto?, parece pensar o ministro por meio de seu juridiquês, embora obviamente não se expresse dessa forma.

É irônico que Fachin fundamente seu voto em decisão da Corte Americana de Direitos Humanos, pois, na ADPF 811, quando se tratou de fechar totalmente as igrejas durante a pandemia, ele se esqueceu de que a liberdade religiosa é uma das principais liberdades previstas na Convenção da mesma Corte, inclusive com vedação a relativizações, afirmadas em seu texto. Mas, quando o caso sub júdice guarda relação com a pauta “progressista”...

Depois de trazer um precedente de soft law (isto é, não obrigatório) no julgado para albergar o aborto, Fachin faz uma exegese da ADPF 54 digna de Steven Spielberg. Por mais que a situação fática envolva uma situação delicada, não pode o ministro torcer uma decisão em controle concentrado com efeito erga omnes (para todos) para agasalhar sua visão de mundo e seu entendimento sobre a pauta do aborto. Analisem conosco a ementa da ADPF 54: “Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal”. O texto é claro: é inconstitucional tipificar o aborto de anencéfalo como crime! As 433 páginas da decisão na ADPF 54 transcrevem laudos médicos, doutrinas e são resultado de diversas audiências públicas ouvindo especialistas, tudo para corroborar a inviabilidade de sobrevida da criança anencéfala.

Se você ainda acha que um presidente da República não tem nada a ver com aborto, repense seus conceitos

Nós também discordamos do aborto nesta hipótese; mas ela está presente no Direito brasileiro em face de uma decisão emitida no controle concentrado de normas, após longo processo, discussão e debates. Agora, simplesmente dizer que o caso de fetos siameses se adequa ao do anencéfalo, e por isso eles podem ser abortados, é um salto lógico imenso. Se o aborto fosse permitido nesse caso, em tese, qualquer outra hipótese em que a genitora tivesse o ânimo de abortar, por alguma comorbidade indesejada do feto, poderia usar a mesma via. Seria a criação definitiva de uma excludente de ilicitude aberta inexistente no Direito brasileiro e, arrisco dizer, mundial. Felizmente, Fachin ficou sozinho nessa: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Nunes Marques acabaram seguindo Mendonça.

Importante lembrar que o ministro que está seguindo as normas processuais brasileiras e impedindo a possibilidade de aborto não previsto em nosso Direito Penal foi escolhido por Jair Messias Bolsonaro, enquanto o ministro que abriu a divergência para passar por cima do Estado de Direito, julgar em regime de exceção e abrir a porteira para o aborto de crianças com comorbidades foi indicado por Dilma Rousseff, do PT. Em 2023 mais duas vagas para o STF serão abertas. Se você ainda acha que um presidente da República não tem nada a ver com aborto, repense seus conceitos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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