| Foto: cat6719/Pixabay
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Depois de escrevermos sobre democracia, nosso “planejamento” seria falar sobre as diferenças entre monarquia e república, como se adaptam a determinados arranjos sociais, e demonstrar porque a república deu tão certo nos EUA e tão errado no Brasil.

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Contudo, como quase sempre na vida, é difícil falarmos sempre sobre o que “queremos”. O ritmo alucinante de fatos – muitos deles absurdos – acaba pipocando em nossa tela aos montes, então seguimos pelas urgências primeiro. Porém, como início, sempre vale lembrar um pouquinho de teoria, nem que seja uma frase. E a de hoje é: a liberdade religiosa é o termômetro da democracia. Justamente por ser muito sensível a qualquer abalo, e que é o prenúncio de desarranjos maiores.

O caso desta semana é daqueles que desafiam quem acredita não haver perseguição religiosa no Brasil, ainda que sob a forma da chamada “violência simbólica”, quando há um conjunto de situações verbais, culturais ou de ações negativas ou afirmativas que restringem expressão, acesso e demais concretizações de direitos por motivo religioso.

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“É importante que ela [a requerente] possa e se permita ampliar seu pensamento sobre as questões sexuais (...) [ela]possui algumas crenças que podem impossibilitá-la de criar adequadamente uma criança.”

Trecho de decisão judicial que negou a uma mulher evangélica, no Rio Grande do Sul, a possibilidade de ingressar no cadastro de pessoas que podem adotar crianças.

Falamos sobre a negativa judicial em processo de habilitação para adoção, por uma cidadã brasileira, residente na cidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Por mais que ela mesma já tenha publicado o fato em suas redes sociais, vamos omitir seu nome, tendo em vista o sigilo que envelopa as demandas judiciais que envolvem o Direito de Família. O caso é aterrador. Tivemos acesso aos autos e pudemos averiguar cada detalhe. O resumo da lide é exatamente aquele que vítima repercutiu em suas redes sociais.

Para alguém ou um casal adotar uma criança no Brasil, antes do processo em si, precisa ingressar com um pedido de habilitação de adoção por meio de um processo judicial de jurisdição voluntária (quando não há litígio). A requerente ingressou com o pedido de habilitação de adoção na forma do artigo 197-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, cumprindo todas as formalidades legais necessárias. Entretanto, foi surpreendida com uma sentença negando direito à expectativa da adoção.

Este juízo de habilitação existe justamente para averiguar se o(a) postulante preenche os requisitos da lei para ser pai/ mãe adotivo(a). Há situações de idade, condição psicossocial, socioeconômica e por aí afora. A partir de entrevistas com psicólogos e assistentes sociais, há a formação da convicção pelo juiz da Vara de Infância e Juventude – especializada em tratar destes casos –, para então sair uma sentença confirmando ou não a habilitação. No caso que comentamos, depois desta tramitação, a resposta foi um rotundo e sonoro não. O que deixou a requerente, sua audiência e a nós pasmos foi a justificativa adotada pela magistrada que prolatou a decisão: seu conjunto de crenças.

Isto mesmo. Em poucas (e frias) palavras, as razões pelas quais a postulante não poderia ser uma mãe eram as suas crenças, especialmente quanto ao sempre pantanoso terreno da sexualidade humana. Diz a julgadora, em tom professoral, que é “importante que ela [a requerente] possa e se permita ampliar seu pensamento sobre as questões sexuais”. Ainda: “possui algumas crenças que podem impossibilitá-la de criar adequadamente uma criança”. Simples assim.

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É impensável em que, em um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político (artigo 1.º, II, III e V da Constituição Federal), qualquer cidadão brasileiro tenha negada a expectativa de um direito (adoção) pelo simples fato de ser um cristão de tradição evangélica! Este caso vai muito além das liberdades de crença e religiosa. É uma afronta aos próprios fundamentos da República brasileira. Além de ser um atentado aos fundamentos do Estado Democrático de Direito nacional, a sentença também ofende os objetivos fundamentais da República brasileira para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3.º, I e V da Constituição).

A sentença, ao negar o direito de constar em um cadastro de adoção, traz um dano irreparável à dignidade humana desta mulher. Com todas as palavras, afirmou que ela não “merece” viver nem sequer a expectativa da maternidade. Fere, ao mesmo tempo, sua cidadania e seu espaço no ambiente de pluralismo político. Foram negadas a esta mulher as condições primordiais, o núcleo essencial de seu propósito de existência.

É impensável em que, em um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político , qualquer cidadão brasileiro tenha negada a expectativa de um direito (adoção) pelo simples fato de ser um cristão de tradição evangélica!

A cidadania consiste, entre outros direitos, na garantia plena do exercício de nossas liberdades. Ao impedir o acesso de alguém a um simples cadastro devido à confissão religiosa professada, o Estado-juiz nega o exercício de todas as liberdades que deste ato decorrem. É, ao mesmo tempo, uma violência infame contra seus direitos políticos de expressar sua consciência e crença em qualquer espaço, inclusive em sua casa e para seus filhos!

Tal negativa não constrói uma sociedade livre, justa e solidária; muito menos promove o bem de todos, sem quaisquer preconceitos ou outras formas de discriminação. A negativa expressa nesta sentença judicial apenas e tão somente corrói a confiança que temos no sistema jurídico brasileiro, na democracia, na República e na própria laicidade.

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Ser laico é justamente não interferir e embaraçar o culto religioso e a fé em sua mais íntima expressão. Uma decisão que nega um direito a um cadastro de adoção, em razão das crenças religiosas da candidata, é um embaraço que inviabiliza o exercício da fé dentro da casa das pessoas. É muito pior até que o laicismo francês. Este relega a fé ao espaço privado, justamente ao ambiente familiar e doméstico; já a famigerada sentença invade este locus sagrado dando o seguinte recado: “que sua fé morra com você e não seja legada a futuras gerações”.

Uma decisão que nega um direito a um cadastro de adoção, em razão das crenças religiosas da candidata, é um embaraço que inviabiliza o exercício da fé dentro da casa das pessoas. É muito pior até que o laicismo francês

Obviamente, esta decisão sofrerá a devida análise no duplo grau de jurisdição, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Claro que, caso não seja reformada, deverá ser objeto de recurso aos tribunais superiores (STJ e STF). Será levada ao conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Irá para a ONU. Mas é aqui, na Gazeta do Povo, que tudo começa ao repercutirmos, com indignação, aberrações como esta, em pleno gozo de liberdades civis fundamentais, no século 21. Somente por meio das instituições da democracia, sendo a imprensa livre uma delas, poderemos fazer de você, leitor e leitora, participantes e responsáveis pelo futuro da nossa nação.

Nunca pedimos uma ação específica por aqui. Mas este caso merece. Por favor, compartilhe este texto com o máximo de pessoas que você puder. Mesmo para quem não é assinante. Mande no aplicativo de mensagens, mande e-mails. Vamos encher o Brasil com este alerta de forma bem visível!

Cabe a cada um de nós não tolerar que nossa democracia escorra pelo ralo. A sirene está tocando alto. A bola está conosco.

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