O Brasil é uma democracia. Formalmente está lá no artigo primeiro da Constituição Brasileira. Em uma democracia saudável todos tem igualdade de condições perante a lei, cultura, economia e política, tendo nas liberdades civis a expressão desta igualdade com a participação política de todos na polis, assim, acertadamente ensina Alexis de Tocqueville.
A participação política de todos nas “coisas” da cidade resulta em pluralidade de pensamentos na esfera pública. Lembrando que participação política vai muito além de votar e ser votado, antes é a expressão de ação de cada um na comunidade, formando, assim, uma comunidade democrática. Observamos que além de agir só, nós precisamos agir com o outro, “depois da liberdade de agir só, a mais natural ao homem é a de conjugar seus esforços com os esforços de seus semelhantes e agir em comum. O direito de associação parece-me, pois, quase tão inalienável por sua natureza quanto à liberdade individual.
E, aqui entra a Igreja. A igreja constitui um corpo particular na sociedade que desfruta, “não apenas o direito à livre associação que naturalmente pertence à pessoa humana, mas ainda com o direito de acreditar livremente na verdade reconhecida pela própria consciência, isto é, com o mais fundamental e inalienável de todos os direitos humanos[iii]”, qual seja, a liberdade religiosa que compreende credo, culto e organização. Lembremos que a Igreja não é um simples CNPJ, mas a união dos fiéis em torno da divindade. A igreja é a soma das pessoas. Os fiéis são a igreja, a igreja são os fiéis.
Mas o que a Igreja e a liberdade religiosa têm a ver com a democracia? Tudo. Os valores morais, as virtudes e o amor ao próximo são vitais para afastar o homem do egoísmo individualista que o impede de conjugar esforços com e para o próximo, em busca do bem comum. Além de Tocqueville identificar este fermento evangélico na democracia americana, vejam a conclusão de Jaques Maritain, sobre a importância do cristianismo para a democracia:
A democracia tem necessidade do fermento evangélico para se realizar e para se subsistir, o advento durável do estado de espírito democrático e da filosofia democrática da vida requer que as energias evangélicas penetrem a existência profana, do irracional pela razão, e se incorporem ao dinamismo vital das tendências e dos instintos da natureza para formar e fixar nas profundezas do inconsciente os reflexos, os costumes e as virtudes sem os quais a inteligência que dirige a ação oscila sob qualquer vento e egoísmo devastador prevalece no homem.
Antes de alguém atacar o texto porque literalmente fala em evangelho (cristianismo) e não “qualquer credo”, lembrem que Maritain foi um dos coautores da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Retornando ao assunto, outro fator fundamental para a democracia é que a liberdade religiosa necessariamente traz ao espaço público uma participação política de diversas fés, gerando, então, a tão importante multiplicidade de pensamentos, necessárias para evitarmos uma tirania da maioria.
Com este contexto a mais um de tantos exemplos no Brasil de afronta a fé e a democracia, desta vez na cidade de Porto Alegre. Segundo o Estado do Rio Grande do Sul a capital de Porto Alegre possui risco médio em relação ao Covid-19, possuindo vários protocolos de distanciamento social, com liberação parcial de diversas atividades. Pelo menos era o que devia ser. Porque para Marchezan Jr., Porto Alegre possui risco altíssimo e quase nada pode abrir, muito menos a Igreja que quer abrir para “faturar”. Sim, foi exatamente isto que ele disse, veja a transcrição de parte do áudio:
“Jornalista: Deus está em todo lugar; A gente pode rezar em qualquer lugar, a gente pode rezar em casa. É bastante impressionante a pressão que o senhor sofre para reabertura das Igrejas evangélicas.”
Prefeito Marchezan Jr. responde [referindo-se às Igrejas mencionadas pela jornalista]: “Sua pergunta já foi elucidativa. É uma preocupação inadequada e injusta, por um motivo torpe, que é reunir pessoas para faturar, só pode ser essa a explicação.”
Vejam que a jornalista já começa mal, afirmando em sua resposta como e onde o fiel deve adorar a Deus, como se ela fosse uma autoridade eclesiástica, e o Sr. Nelson Marchezan responde: “por um motivo torpe, que é reunir pessoas para faturar”.
Chamar a fé de torpe, é impensável em uma democracia, sobretudo, em um país que foi forjado no seio da Igreja, que nasceu por missões jesuítas - que vieram do velho mundo para levar Cristo ao novo mundo. Ainda mais em uma cidade que tem no meio de sua bandeira a cruz vermelha da ordem de Cristo e como seus primeiros nomes, homenagens a santos, parece que nem o seu prefeito sabe disso...
Como já falei aqui, o Prefeito de Porto Alegre parece não conhecer a história do Brasil, muito menos a de Porto Alegre e a importância da Igreja e da liberdade religiosa para a democracia. Mesmo assim, tal ignorância não lhe concede o direito de declarar que a Igreja se reúne para faturar! A Igreja é assembleia dos crentes, a soma dos fiéis, e, nada é mais natural ao ser humano, como ensina Tocqueville e reproduzi anteriormente, do que agir, associar-se com outros. Trata-se de um direito inalienável de todos nós o de se associar e, se para fins de adoração, o mais fundamental e inalienável de todos os direitos, pois decorre do mais íntimo do coração de cada um.
A ofensa do prefeito da capital do Rio Grande do Sul às igrejas é uma ofensa direta a milhares de porto-alegrenses e a democracia, porque a Igreja são as pessoas! Estas pessoas não se encontram para faturar, porque a Igreja é uma instituição que possui um fim em si mesma, e, portanto, não é um meio para alcançar um fim, ela é o fim último dela mesma. Já, a liberdade religiosa, participa diretamente do núcleo da democracia brasileira. Ela é essencial para a participação política dos cidadãos nas coisas da cidade, quando imprime neles o amor pelo próximo e o respeito a ordem e as leis, além de levar ao espaço público a mais ampla diversidade de pensamentos, fruto das mais diversas expressões de fé que existem no Brasil e, também, em Porto Alegre.
Outro fato curioso é o porquê que os cientistas do munícipio que querem restringir a liberdade de culto (não permitindo nem de forma parcial e com protocolos) de milhares de pessoas são “melhores” ou estão mais “certos” que os cientistas do Estado que harmonizaram a saúde pública como exercício das liberdades.
O fato é que os fiéis de Porto Alegre, gostariam de saber por que os cientistas da municipalidade são melhores do que os cientistas do Estado. Para estes existe um planejamento e uma possibilidade de cultos com capacidade reduzida e seguindo os protocolos de segurança, já para aqueles não existe culto e nem planejamento. Do paço de Porto Alegre, escuta-se apenas a estridulação, ou cricri, dos grilos. Ou, afirmações de que as Igrejas querem abrir por motivo torpe.
"A
liberdade uma vez confiscada não pode ser restituída íntegra, ainda mesmo que a
aumentem; ficará sempre o medo de que ela seja suprimida outra vez e com maior
facilidade." Joaquim Nabuco.
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