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A recente publicação do estudo científico “Long-term ayahuasca use is associated with preserved global cognitive function and improved memory: a cross-sectional study with ritual users” (“O uso prolongado de ayahuasca está associado à preservação da função cognitiva global e à melhora da memória: um estudo transversal com usuários em rituais”, em português) lança luz sobre uma questão de grande relevância: o impacto das evidências científicas nas decisões jurídicas relacionadas ao uso religioso da ayahuasca.
A ayahuasca (também chamada de Hoasca, Vegetal e Daime) é uma bebida tradicionalmente utilizada por povos indígenas da Amazônia e incorporada em rituais de algumas religiões brasileiras, como a União do Vegetal, o Santo Daime e a Barquinha.
No Brasil, o uso ritualístico da ayahuasca está bem estabelecido e protegido pela Resolução 1, de 25 de janeiro de 2010, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), que reconhece sua importância cultural e espiritual. Após décadas de debates e estudos, o país consolidou uma posição que equilibra o exercício da liberdade religiosa com a necessidade de tutela da saúde pública, garantindo que as comunidades religiosas possam exercer suas práticas ancestrais sem interferências indevidas. Essa maturidade jurídica reflete um respeito profundo pelas tradições e pela diversidade cultural que compõe a nação brasileira, amparada por evidências científicas que atestam a segurança do uso do chá Hoasca dentro do contexto religioso.
Os tribunais, ao analisarem casos relacionados ao uso da ayahuasca, não podem mais recorrer a argumentos genéricos de potenciais danos à saúde pública ou individual sem embasamento em dados concretos
Todavia, em outros países, a situação ainda é bem diferente. A utilização da ayahuasca ainda enfrenta controvérsias jurídicas significativas, muitas vezes pautadas por desconhecimento ou preconceitos enraizados. A falta de compreensão sobre os efeitos da ayahuasca e a segurança dentro de contextos ritualísticos adequados leva a decisões que restringem ou até mesmo criminalizam seu uso, afetando severamente as práticas religiosas legítimas de confissões que a utilizam em seus cultos.
O recente estudo publicado na prestigiada revista médica European Archives of Psychiatry and Clinical Neuroscience é particularmente relevante nesse contexto. Ao demonstrar que o uso prolongado da ayahuasca está associado não apenas à preservação da função cognitiva global, mas também a melhorias na memória, a pesquisa fornece evidências científicas sólidas que podem e devem ser consideradas nas decisões estatais sobre o tema. Membros experientes de religiões ayahuasqueiras, com mais de 20 anos de prática ritual, apresentaram desempenho cognitivo igual ou superior ao de não praticantes, contrariamente ao que argumentam aqueles que associam o chá psicoativo a prejuízos mentais.
Essas descobertas têm o potencial de influenciar significativamente futuras decisões jurídicas em países onde a ayahuasca ainda é objeto de controvérsia. Os tribunais, ao analisarem casos relacionados ao uso da ayahuasca, não podem mais recorrer a argumentos genéricos de potenciais danos à saúde pública ou individual sem embasamento em dados concretos. A ciência, nesse caso, desempenha um papel fundamental ao desmistificar preconceitos, desconstituir estigmas e fornecer uma base objetiva para o debate. Persistir em fundamentações vagas ou especulativas desconsidera a evolução do conhecimento e compromete a imparcialidade do julgamento. Além disso, ignorar tais evidências não apenas enfraquece a credibilidade das instituições judiciais, mas também perpetua injustiças contra grupos que buscam, de forma legítima, exercer sua fé e seus ritos.
Em conclusão, o estudo dos pesquisadores Rafael Guimarães dos Santos et al. (2024) representa um avanço significativo na compreensão dos efeitos da ayahuasca e reforça a necessidade de que evidências científicas sejam consideradas nas futuras deliberações.
Desafios como esses, relacionados à proteção e ao respeito às manifestações religiosas, são abordados com profundidade na pós-graduação em Direito Religioso da UniEvangélica/IBDR. Esse curso inovador prepara profissionais para enfrentar questões jurídicas complexas com rigor técnico, visão crítica e respeito à diversidade religiosa. Com um corpo docente composto por especialistas renomados, como Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina, responsáveis por esta coluna, a pós-graduação promove uma compreensão profunda do Direito Religioso, preparando seus alunos para liderar debates e construir soluções no Brasil e no cenário internacional.
André Fagundes é doutorando em Direito Público, mestre em Direito Constitucional, e investigador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). É também Professor na pós-graduação em Direito Religioso na UniEvangélica/IBDR e pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (Cedire).
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos