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Nesta semana comentamos o caso da Câmara de Vereadores de São Carlos (SP), onde o vereador Djalma Nery (PSol) busca revogar uma resolução da casa que prevê a leitura da Bíblia no início das sessões, “bem como do uso de crucifixos ou imagens religiosas de qualquer natureza em caráter permanente no plenário da Câmara”. O projeto de resolução foi proposto em 8 de outubro. Como substituição à leitura do texto sagrado, a intenção do vereador é que seja lido um trecho da Constituição da República, ou algum tratado ou convenção de Direitos Humanos, conforme diz o artigo 1.º.
A vida em sociedade é um processo dinâmico. Isto quer dizer que, à medida que o tempo passa, costumes mudam, valores são revistos, prioridades aumentam ou diminuem. A política é responsável por isso, justamente porque trata dos assuntos da cidade.
A sociedade política – o conjunto de forças vivas de uma nação, como diria o filósofo católico francês Jacques Maritain (um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948) – resolve se unir para determinar um conjunto de valores especiais, e estabelecer uma Constituição. Neste documento, há valores inegociáveis para tal sociedade, que expressam o que pretendem na busca pela felicidade geral. Ao Estado que cria, a Constituição traça limites e prevê relações em todas as várias e complexas situações sociais. Com o espaço que a religião ocupa na chamada “arena pública” não é diferente.
A proposta do nobre edil de São Carlos nos lembra da estratégia que os franceses tiveram quando da sua revolução no século 18
E aí temos o Brasil, em 1988 – 40 anos depois da DUDH –, promulgando sua sétima Constituição (a sexta da República), e reiterando o modelo de laicidade colaborativa, como melhor exploramos em nossa segunda obra, A Laicidade Colaborativa Brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988. O artigo 19, I do texto constitucional diz que Estado e poder religioso (o Brasil, diferentemente do resto do mundo, estabelece isso com toda e qualquer religião) mantêm relacionamento amistoso e com possibilidades de colaboração para o bem comum, embora não haja aliança ou dependência de parte a parte.
Vivemos, porém, um choque de cosmovisões em todas as áreas. A batalha pelo conceito e sentido de expressões é uma de suas dimensões. “Democracia” e “cidadania” são exemplos de que palavras podem assumir significados diametralmente opostos a depender do espectro político de quem as pronuncia. Com “laicidade” ou “Estado laico” é a mesma coisa.
Na justificativa do projeto de resolução, o edil de São Carlos (espero que ele não queira mudar também o nome da cidade, que, por sua vez, está no estado de São Paulo) entende que a laicidade promove uma separação entre Igreja e Estado. Até aí, está corretíssimo. Porém deixa de consignar que o modelo brasileiro é diferente de outros – especialmente do francês e do belga, onde há um laicismo de combate. Nestes países, a visão é de que, como a religião é intrinsecamente algo ruim, é importante que a sociedade esclarecida promova o devido banimento dos elementos religiosos dos espaços públicos, enquanto o povo passa pelo devido processo de “iluminação”.
Interessante que a proposta do nobre edil nos lembre justamente da estratégia que os franceses tiveram quando da sua revolução no século 18. Saquearam as igrejas, mataram os padres, anunciaram um reset no calendário e proclamaram a “Igreja Constitucional da França”, entronizando a “Deusa Razão”. Ou seja: castraram a religião na esfera pública, tomando de assalto elementos como a reverência sacra para os símbolos míticos que criaram para tentar construir um imaginário no inconsciente coletivo. Todos sabemos que poucos anos depois estavam lá coroando Napoleão em Notre Dame, mostrando que não se retira algo do coração das pessoas de maneira tão rasa e leviana.
Já por aqui o pensamento é diferente. A religião é muito bem-vinda entre nós. Não apenas para a dimensão propriamente espiritual da existência, mas também como amálgama, argamassa que nos une uns aos outros enquanto brasileiros. Somos o “povo da cruz”, desde o início da nossa história nacional. Há uma cruz em cada bandeira brasileira, desde a primeira de dom Manuel I até a positivista atual. Rui Barbosa, um dos artífices do golpe republicano, quando do Decreto 119-A, que introduziu a própria laicidade, escreve que “antes da República já existia o Brasil. O Brasil nasceu cristão, cresceu cristão e cristão continua sendo”. Ou seja, mesmo os brasileiros positivistas enxergavam na religião um alicerce nacional.
A leitura da Bíblia e a presença de crucifixos ou imagens permanentes em ambientes públicos mostra justamente, ao lado dos pavilhões republicanos do município, do estado e nacional, que as ordens convivem harmoniosamente para o bem
Vejamos a situação da cidade com o nome de santo. Foi fundada em 4 de novembro de 1857, e seu nome se deve a São Carlos Borromeu, sobrinho do papa Pio IV, cardeal-arcebispo de Milão e canonizado em 1610 pelo papa Paulo V. Cidade fundada pelos bandeirantes, especialmente o Conde do Pinhal, na estrada que levava às minas de ouro de Cuiabá e Goiás. O primeiro prédio da cidade foi uma capela. Inicialmente o nome da cidade era “São Carlos do Pinhal”, sendo reduzida para São Carlos em 1908, já na República.
Hoje a cidade de mais de 200 mil habitantes é muito ativa, abrigando a Universidade Federal de São Carlos e forte atividade agropecuária. Seu perfil religioso, conforme o IBGE e o defasado censo de 2010, mostra 65,56% de católicos, 21,15% de protestantes, religiões minoritárias somando 4,12% e outros 6,06% sem religião. Este porcentual avassalador mostra como o espaço religioso no ambiente público tem absoluta legitimidade entre nós. Este quadro muda pouco no resto do país. A leitura da Bíblia e a presença de crucifixos ou imagens permanentes em ambientes públicos mostra justamente, ao lado dos pavilhões republicanos do município, do estado e nacional, que as ordens convivem harmoniosamente para o bem.
A laicidade colaborativa, que privilegia a liberdade religiosa como uma realidade de expressão efetiva da fé e que não nega a religião na construção sócio-política da cidade, é a definitiva garantia da democracia para todos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos