Ouça este conteúdo
As eleições trouxeram dados muito interessantes, sob vários ângulos. Indiscutivelmente houve um avanço de candidaturas à direita, tanto nas proporcionais (vereadores) quanto majoritárias (prefeitos). Ao mesmo tempo, os partidos políticos no Brasil continuam sendo apenas plataformas obrigatórias para a eleição de natureza personalista, onde (quase sempre) ganha quem tem mais carisma.
E, nesta chamada “economia da atenção”, é também cada vez mais corrente que os diferentes nichos da sociedade busquem uma identificação de sua comunidade a partir do processo eleitoral. Isto é parte, inclusive, do fundamento republicano do pluralismo político (artigo 1.º, V, da Constituição de 1988).
Considerando este fato, chamou a atenção o número de candidatos com identificação religiosa. Das 454.689 candidaturas à prefeito e vereador, 7.260 possuíam viés religioso direto, sendo 469 eleitos até agora. Estes dados foram trazidos pela Nexus – Pesquisa e Inteligência em Dados, a partir da disponibilização pública feita pelo Tribunal Superior Eleitoral, conforme publicado pela Brasil61.
O aumento no porcentual de candidatos e eleitos com viés religioso revela um amadurecimento significativo da sociedade brasileira em termos de representatividade
Os cruzamentos de dados mostram um aumento de 6% em relação a 2020, quando 442 candidatos haviam sido eleitos, e de 63% em relação ao ano 2000, quando haviam sido 287 eleitos. Os filtros usados de nomes religiosos foram: “pai”, “mãe”, “pastor”, “pastora”, “pr.”, “missionário”, “missionária”, “bispo”, “bispa”, “apóstolo”, “apóstola”, “reverendo”, “irmão”, “irmã”, “ir.”, “padre”, “abençoado”, “abençoada”, “babalorixá”, “ialorixá”, “ministro”, “ministra”, “Ogum”, “Exú”, “Iansã”, “Yansã”, “Iemanjá”, “Obaluaê”, “Oxalá”, “Omulu”, “Oxóssi”, “Oxum”, “Oxumaré” e “Xangô”. Quanto a partidos, os campeões de cargos religiosos são o PP e PSD (cada um com 51 eleitos), seguidos do MDB (com 50).
Por mais que algumas vozes pensem de maneira contrária, o aumento no porcentual de candidatos e eleitos com viés religioso revela um amadurecimento significativo da sociedade brasileira em termos de representatividade. Esse fenômeno reflete uma compreensão mais profunda de que a verdadeira laicidade estatal não implica na ausência ou na exclusão das convicções religiosas no espaço público. Ao contrário, ela reconhece que o ser humano, ao participar da vida pública, traz consigo seus valores e crenças, e que é impossível se despir completamente desses elementos, como pretendia a visão positivista clássica.
No contexto brasileiro, onde a laicidade colaborativa é um princípio fundamental, o que se espera é que, mesmo trazendo suas convicções religiosas, os representantes eleitos articulem suas propostas e soluções em termos de razão pública. Isso significa que, ainda que suas motivações possam ser inspiradas por crenças religiosas, os argumentos apresentados e as políticas defendidas devem ser discutíveis e aceitáveis no âmbito do pluralismo democrático. Nesse sentido, a laicidade brasileira não é um convite ao apagamento das identidades religiosas, mas sim à sua convivência e colaboração na construção do bem comum.
VEJA TAMBÉM:
Os valores religiosos, portanto, cumprem um papel essencial como bússola moral da sociedade, guiando muitos cidadãos e representantes eleitos na busca por justiça, paz e soluções duradouras para os problemas contemporâneos. É importante que a voz das religiões, em toda a sua diversidade, seja ouvida e considerada no debate público, contribuindo para uma sociedade mais plural e verdadeiramente representativa. O aumento de candidatos e eleitos com viés religioso demonstra que a sociedade brasileira está cada vez mais disposta a acolher essa diversidade e a valorizar o papel das convicções religiosas na arena pública, sempre no espírito do respeito à laicidade e ao pluralismo garantidos pela Constituição.
A liberdade religiosa é um dos pilares fundamentais de uma sociedade democrática e plural. No contexto brasileiro, ela se entrelaça diretamente com a liberdade de expressão e a vontade política do povo, funcionando como um instrumento de soberania popular. Quando falamos do aumento de candidatos com identificação religiosa, muitos dos quais acabam eleitos, estamos, na verdade, observando uma expressão legítima dessa liberdade religiosa em seu sentido mais amplo, que vai além da prática privada e individual da fé. Trata-se do direito de levar essas convicções para a esfera pública e de articular projetos políticos com base em princípios e valores que fazem parte da identidade de uma parcela significativa da população.
Esse fenômeno reflete uma correlação direta com a representatividade democrática das urnas. Em uma democracia, o poder emana do povo e é exercido por meio de seus representantes eleitos. Portanto, quando vemos um aumento de candidatos com identificação religiosa e sua consequente eleição, o que se evidencia é a vontade de uma parcela da sociedade que se reconhece e se sente representada por esses valores. Isso não apenas legitima a presença das religiões no espaço público, mas também fortalece a soberania popular, pois mostra que os cidadãos estão escolhendo ativamente representantes que compartilham de suas crenças e valores morais.
É importante que a voz das religiões, em toda a sua diversidade, seja ouvida e considerada no debate público, contribuindo para uma sociedade mais plural e verdadeiramente representativa
A presença de políticos que se identificam publicamente com suas convicções religiosas é, assim, um reflexo da diversidade e da riqueza cultural e espiritual do Brasil. Mais do que isso, ela demonstra que a democracia brasileira está amadurecendo, permitindo que diferentes segmentos da sociedade se expressem livremente e participem da construção do espaço político de maneira legítima e transparente. O voto nas urnas, nesse sentido, torna-se uma forma de expressão dessa pluralidade religiosa e cultural, o que é essencial para garantir que a democracia seja verdadeiramente representativa e inclusiva.
A tentativa de isolar ou excluir as influências religiosas da arena pública, sob o argumento de neutralidade, acabaria por suprimir a vontade de milhões de brasileiros que veem na fé um elemento central de suas vidas. A democracia, para ser autêntica, deve acolher todas as expressões legítimas da vontade popular, inclusive aquelas que emanam de convicções religiosas. Em um sistema laico colaborativo, como é o caso do Brasil, a religião e o Estado se separam, mas isso não significa que os valores e as convicções religiosas dos cidadãos não devam ter voz e influência. O que se busca é que essa voz seja articulada com respeito às regras do jogo democrático, dialogando com a razão pública e contribuindo para a formulação de políticas que atendam ao interesse comum.
Assim sendo, a eleição de candidatos com identificação religiosa não é um retrocesso ou um desvio da laicidade; é uma expressão da vontade soberana do povo que se reflete nas urnas e nas estruturas do poder.
É a democracia em ação, onde todos os segmentos sociais, religiosos ou não, têm o direito de se fazer ouvir e de participar da construção de um país que respeite sua identidade e que acolha a diversidade como valor fundamental. Assim, os valores religiosos, longe de serem excluídos, tornam-se parceiros na busca por soluções duradouras e pela promoção do bem comum, fortalecendo a democracia e a soberania popular em sua essência.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos