A origem do carnaval remonta à Idade Média, mas suas raízes vão ainda mais fundo, ligadas a celebrações pagãs da Antiguidade. Povos como mesopotâmicos, gregos e romanos já realizavam festividades com características muito semelhantes ao que hoje chamamos de carnaval. Um exemplo curioso é a festa das Saceias, entre os babilônios, na qual um prisioneiro era escolhido para viver como rei por cinco dias. Durante esse período, ele usufruía de todos os privilégios do monarca, mas, ao fim das festividades, vinha o desfecho trágico: era espancado e executado. Agora, veja a semelhança com o carnaval moderno: um homem, que não é prefeito nem autoridade política, recebe simbolicamente a chave da cidade, assumindo o papel de “dono” da folia. Esse personagem? O Rei Momo.
Os romanos também tinham suas celebrações regadas a banquetes, bebidas, danças e, claro, a total entrega aos prazeres da carne. Muitas dessas festividades tinham conotações religiosas, como a celebração em fevereiro para marcar o início do novo ano. O mito de Baco (para os romanos) ou Dionísio (para os gregos) remonta a séculos antes de Cristo. O que se vê ao longo da história é um padrão: uma espécie de “mundo invertido” onde, por alguns dias, as regras do cotidiano se suspendem e as pessoas se fantasiam, assumem novas identidades e extravasam desejos que, talvez, no resto do ano permaneçam reprimidos.
A própria palavra “carnaval” vem do latim carnis levale, que significa “retirar a carne”, refletindo a ideia de uma liberdade temporária dos impulsos da carne antes do período de restrição da Quaresma. Desde o seu surgimento, o carnaval carregou essa proposta de subversão da ordem, um momento em que as normas sociais são flexibilizadas e tudo pode ser vivido “de cabeça para baixo”.
O carnaval não é justificativa nem para violar a liberdade religiosa dos outros, nem para zombar do que é sagrado para os demais
O mais curioso é que, apesar dessa aparente libertinagem, o carnaval tem uma origem cristã. A própria Igreja, ao longo da Idade Média, tentou canalizar os instintos humanos para esse período específico, permitindo os excessos antes da purificação quaresmal. A ideia era simples: melhor “deixar o povo extravasar” para que, depois, voltasse à disciplina da fé, aos jejuns e às orações. Mas, como a história bem mostra, a Igreja nunca conseguiu impor um controle real sobre essas festividades. As regras que tentaram estabelecer? Todas falharam. No fim das contas, o carnaval sobreviveu e evoluiu justamente por sua essência anárquica e transgressora, um verdadeiro espelho da humanidade, com suas contradições, excessos e tentativas de redenção.
Não dá para separar religião da construção cultural da sociedade. Desde os primórdios, a influência religiosa esteve presente, seja para moldar costumes, impor controles ou, em muitos casos, ser distorcida e explorada.
Hoje, vemos um embate acalorado em torno do carnaval. De um lado, há aqueles que defendem a moralidade e os bons costumes, esquecendo que a festa tem origem justamente na tradição cristã. Do outro, há quem se aproprie desse evento sem qualquer conexão histórica, usando-o para ridicularizar símbolos e objetos religiosos. A questão que fica é: como resolver esse dilema?
O fato é que o carnaval continua cumprindo seu papel original de “mundo invertido”, um período em que as regras são flexibilizadas e as convenções sociais, questionadas. Sim, foi a Igreja que deu forma a essa celebração, mas o tempo passou, a sociedade evoluiu, e novas religiões e crenças também passaram a se manifestar nesse período. Com isso, tornou-se essencial garantir direitos e proteções a todos, sem que a liberdade de uns implique na violação da dignidade de outros.
A Constituição Brasileira, no artigo 5.º, inciso VI, deixa claro: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Isso significa que a liberdade religiosa não é um direito sazonal, válido apenas em determinados contextos ou épocas do ano. Ela é garantida em qualquer tempo, qualquer lugar e qualquer celebração.
E mais: o Código Penal, no artigo 208, estabelece como crime: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Ou seja, mesmo dentro do espírito de “mundo invertido” do carnaval, a liberdade e a dignidade de qualquer pessoa, independentemente de sua fé, não podem ser violadas. Isso inclui cristãos, adeptos de religiões de matriz africana, pagãos e qualquer outra expressão religiosa.
O respeito deve ser a base da convivência social. No fim das contas, não há como negar: sem a religião, a própria sociedade como conhecemos hoje não existiria. Afinal, foi dentro do contexto religioso que surgiram os primeiros grandes marcos civilizatórios. A questão não é eliminar o carnaval ou cercear a liberdade de expressão, mas lembrar que, em um Estado que se diz democrático e plural, a fé do outro deve ser tratada com o mesmo respeito que cada um exige para si.
Esta coluna foi escrita em colaboração com Ramon Mendonça, advogado e especialista em Direito Religioso.
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