A palavra “inviolável” vem do latim inviolabilis e significa aquilo que não pode ou não deve ser violado. Vemos, no Brasil e no mundo, uma militância que, aos berros, exige que suas pretensões, pensamentos e pautas não sejam violadas; mas, quando se trata de (tentar) violar a tradição cristã, os dogmas da Igreja e assim por diante, faz questão de realizar, com as próprias mãos, atos e resoluções que concretizem uma violação. O exemplo está aí, no mais recente ataque terrorista em Nice, onde três pessoas (inclusive uma brasileira, mulher e negra) foram mortas e as usuais vozes que se levantam pelas minorias mantêm seu usual silêncio, mostrando que a indignação é seletiva e politicamente afetada.
Dizemos isso em razão de uma importante decisão da Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: uma associação que antes se denominava “Católicas pelo Direito de Decidir” não poderá mais usar o “católicas” no nome. Para o colegiado, a finalidade da associação é incompatível com os valores adotados pela Igreja Católica Apostólica Romana de modo geral e universal. O desembargador José Carlos Ferreira Alves tratou sobre o tema com as seguintes palavras:
Ao defender o direito de decidir pelo aborto, que a Igreja condena clara e severamente, há nítido desvirtuamento e incompatibilidade do nome utilizado em relação às finalidades e atuação concreta da associação, o que viola frontalmente a moral e os bons costumes, além de ferir de morte o bem e os interesses públicos.
O primeiro motivo para reconhecer que estamos diante de uma decisão bem desenvolvida e técnica: a crença é inviolável, conforme a Constituição de 1988, artigo 5.º, inciso VI. Segundo, a religião não é objeto de livre alteração, que pode ser editada, repaginada ao bel prazer – pelo menos não a religião cristã.
Afinal, o que defende essa associação? Um esboço do feminismo
A ONG “... pelo direito de decidir” (com reticências para indicar respeito à decisão, bem como para evitar contraditórios como o tal do “abortista católico”) foi fundada em 1993. Conforme descrição do próprio site, “apoia-se na prática e teoria feministas para promover mudanças em nossa sociedade, especialmente nos padrões culturais e religiosos”. Uma das bandeiras defendidas pelo grupo é a liberação do aborto. Na biblioteca on-line da associação encontraremos um e-book com o título Vida: É possível defini-la?: a clássica tentativa de reduzir a vida humana a um objeto de discussão, conveniência e prazer. Entre as autoras, encontraremos Ivone Gebara, que elenca a realidade histórica e a vida pessoal do ser gerador como pré-requisitos para validar o direito de viver do bebê e propõe uma nova interpretação religiosa para respaldar a tão sonhada lei de descriminalização do aborto. No mesmo livro, Débora Diniz defende que o feto é um ser humano em potencial, e por isso o aborto deve ser permitido.
A instituição propaga ideias como a de que Bento XVI é um fundamentalista, e o enquadra na categoria de “cristão fascista”. Suas integrantes espalham a fake news de que os religiosos conservadores irão reprimir qualquer pessoa que pense diferente da doutrina original da cristandade – ou seja, os conservadores são malignos com sede de perseguição. Além disso, colocam o tema da ordenação sacerdotal feminina como uma pauta que deve ser empurrada goela abaixo, ou seja, todas as igrejas devem estabelecer o sacerdócio feminino – perceba o leitor que não se trata de possibilidade, mas de uma imposição – e não reconhecem documentos oficiais da Igreja Católica como a Declaração Dominus Iesus, sobre a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. Apesar de tudo, querem ter o direito de se autodenominarem católicas!
Podemos conhecer a base ideológica dessa ONG a partir da chamada teologia ecofeminista de Ivone Gebara. Trata-se de uma tentativa de repaginar aquilo que sempre existiu na tradição cristã e nos dogmas da Igreja. Não estamos mais em um período ao qual as pessoas abandonam uma crença que não atende suas expectativas e viram ateus, revolucionários, ou criam uma religião aleatória. Agora, elas tentam mudar as bases e herança intelectual existentes e documentadas no entendimento da Igreja, para dar lugar às suas pretensões e forçar a comunidade cristã a aceitá-las sob pena de acusações de intolerância e até mesmo dissolução.
A religião não é objeto de livre alteração, que pode ser editada, repaginada ao bel prazer – pelo menos não a religião cristã
No caso de Gebara, é fornecida uma teologia que, como ela escreve em Teologia Ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião, esteja de acordo com a “realidade cósmica misturada e complexa de que fazemos parte” – pensamento similar ao gnosticismo, movimento teológico condenado como uma das primeiras heresias da história da Igreja. Trata-se de uma perspectiva que tem por fim consolidar “a dominação das mulheres e da natureza do ponto de vista da ideologia cultural” e o seu público-alvo está nas “organizações de mulheres, nas escolas primárias de bairro, nos sindicatos e grupos de reflexão bíblica, nas universidades e escolas técnicas”.
A partir do momento em que o grupo se identifica como “católicas”, vemos o retrato de algo que faz parte do objetivo ideológico feminista: não acabar com o cristianismo, mas repaginá-lo ou “atualizá-lo”, de acordo com um vocabulário próprio da cultura secularizada, validando as inclinações naturais em contraste ao chamado às virtudes que é o cerne do magistério da Igreja, descartando a ideia de autoridade, bem comum e da espiritualidade centrada em um único Deus. Importa mencionar essa pretensão, já que a organização feminista também se vale de problemas reais para passar a ideia de que é um movimento legítimo: mulheres pobres gerando filhos dentro de um ciclo intergeracional de pobreza, vítimas de assédio sexual no ambiente de trabalho e até mesmo em processos seletivos, violência, insegurança e falta de oportunidades.
Esses absurdos existem em nossa sociedade e cabe a nós buscar alternativas tanto no âmbito público (legislação, educação, políticas públicas e afins) quanto no âmbito privado, em que cada um sabe como melhor pode servir a esses grupos vulneráveis. Falar sobre como podemos dar suporte nessas áreas e como a Igreja já tem, em sua natureza, uma vocação social é tema para outros textos. O que queremos dizer é que, diferentemente do novo comprometimento confessional que o feminismo sugere, é possível se preocupar com problemas sociais sem mudar as doutrinas básicas do cristianismo.
Na verdade, a ausência de preocupação por reformas para diminuir as mazelas sociais não está de acordo com a proposta original da confissão de fé cristã, que é uma fé constituída por Deus para suplantar desigualdades, conforme bem lembra o reverendo Davi Charles Gomes, presidente do conselho deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e Religião e CEO da World Reformed Fellowship, em “Uma visão confessional do Estado na luta contra dois tipos de idolatria”. Não precisamos de uma perspectiva feminista da teologia; precisamos, simplesmente, do exercício da teologia pura e simples.
A Igreja tem prerrogativas próprias, como afirma Gomes. Distorcer suas doutrinas com práticas que andam em total oposição à sua fé central representa desonestidade intelectual e desrespeito a credos reconhecidos desde a fundação da Igreja. Apesar de o movimento feminista se valer de problemas reais, não podemos esquecer da sua relação de compromissos: aborto, promoção de libertinagem sexual para meninas, estímulo a práticas sexuais desordeiras à civilização, e paganismo ou secularização da fé cristã.
Direito Canônico é uma coisa, sua preferência ideológica é outra
No caso da Igreja Católica Apostólica Romana, a estrutura-base de sua confissão de fé, ou seja, os seus pilares, sagrados, está presente no Catecismo e no Código de Direito Canônico. Conforme explicamos em Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, “Direito Canônico é aquela subdivisão do Direito Religioso voltado aos cânones da igreja, do termo grego, régua, norma”.
A Igreja Católica tem um posicionamento histórico quando o assunto é vida humana. O entendimento da Igreja Católica, firmado nos seus documentos de fé, não está de acordo com a associação pró-aborto. Diante da incompatibilidade, bem como da tentativa de vincular uma confissão de fé estruturada como sociedade juridicamente organizada a um objeto estranho e, sobretudo, condenado canonicamente, a determinação da retirada do nome “católicas” não é nada além do reconhecimento do fenômeno religioso e uma proteção à confissão de fé católica romana. Como lembramos em Direito Religioso, “na paleta do Direito Canônico deve constar sempre a tinta do sistema de crenças, que informa quais os axiomas e as premissas que devem seguir o exegeta que com ele labuta”. O codex iuris canonici tem uma relação de cânones sobre o aborto:
Cân. 1041: São irregulares para receber ordens: (...) 4.º quem tiver cometido homicídio voluntário ou procurado o aborto, tendo-se seguido o efeito, e todos os que cooperaram positivamente;
Cân. 1046: As irregularidades e os impedimentos multiplicam-se quando provêm de diversas causas; mas não pela repetição da mesma causa, a não ser que se trate de irregularidade por homicídio voluntário ou por aborto procurado, tendo-se seguido o efeito;
Cân. 1398: Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae.
A religião católica é pró-vida em sua natureza. Tentar enquadrá-la em um movimento pró-aborto é um embaraço reprovado pela Constituição
O Direito Canônico está relacionado ao sistema de crenças e fé existentes em uma confissão. Esse sistema é protegido constitucionalmente e não é objeto de argumentação. Cabe, exclusivamente, ao governo da Igreja tratar sobre os seus dogmas. Como diz Allan Walbert:
A esfera de governo está ligada diretamente ao sacramento da ordem, pois é através dele que existem os papéis de comando protagonizados pelos diáconos, presbíteros (padres), bispos e o papa. Os cardeais são títulos conferidos pelo papa – geralmente a um bispo, mas podendo ser a padre ou diácono – com a função de auxiliá-lo na instância superior de tomada de decisões e, além disso, participar do processo da escolha do novo papa.
Ou seja, não cabe a uma militância política mudar anos de tradição religiosa, muito menos tentar repaginar uma confissão de fé que é delimitada por uma sacrae disciplinae leges: estamos tratando de um bem essencial, fundamental e inviolável. O caráter dessa inviolabilidade é confessional, ligado ao transcendente, e cabe a nós respeitar, não degradar, não macular.
Religião é uma das faces da dignidade da pessoa humana e a religião católica é pró-vida em sua natureza. Tentar enquadrá-la em um movimento pró-aborto é um embaraço reprovado pela Constituição e pelo Decreto 119-A, que estabeleceu, no início da República (1890), o princípio da laicidade brasileira, no sentido de respeito absoluto à manifestação organizada da fé em torno de seus próprios dogmas que criam suas normas.
Isso não significa que a associação pró-aborto não seja livre para defender as pautas ideológicas que lhes convêm. Por mais danosa que seja uma pretensão política, a liberdade para associação é uma garantia constitucional, além de ser um retrato da liberdade da expressão. Essa liberdade, no entanto, não se confunde com o ato de degradar intelectualmente uma religião, e aqui vale a interpretação extensiva a respeito do termo degradar, que significa “baixeza, depravação, corrupção gradual”. Isto é, a proibição de atos particulares que contrariem uma confissão religiosa é um pertencimento confirmado pelo artigo 2.º do mencionado decreto, vigente e em concordância com o espírito constitucional de ampla liberdade religiosa e amizade entre Igreja e Estado (e sociedade).
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