No mundo de hoje, o trabalho em equipe é uma parte essencial para o desenvolvimento, seja do ambiente de negócios, seja das atividades sociais. Duas abordagens de trabalho em equipe são a cooperação e a colaboração. Embora os termos sejam muitas vezes usados indistintamente, eles têm diferenças significativas que afetam a dinâmica do grupo e a realização de objetivos comuns.
A cooperação é um conceito em que indivíduos ou grupos trabalham em direção a um objetivo em comum, porém, mantendo sua independência e um distanciamento, digamos, “desconfiado”. Nessa abordagem, cada parte contribui com suas habilidades, recursos e conhecimentos, mas não há uma parceria mais forte entre elas. Cada participante está focado em alcançar seus próprios objetivos, mas reconhece que existe um interesse mútuo em atingir o objetivo compartilhado.
Imagine duas empresas de tecnologia que decidem cooperar em um projeto conjunto. Ambas trazem suas competências específicas para a mesa, mas cada uma permanece responsável por suas próprias atividades. Elas compartilham informações e recursos para alcançar o objetivo comum, mas a coordenação é menos intensa, e cada empresa mantém sua autonomia.
Por outro lado, a colaboração é uma forma mais profunda de trabalhar em conjunto, na qual as pessoas ou grupos compartilham recursos, habilidades, responsabilidades e decisões de forma mais interdependente. Nessa abordagem, as fronteiras entre as partes se tornam menos definidas, e há uma sinergia maior em relação ao objetivo comum.
O governo federal e dirigentes de entidades importantes (como, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia) parecem usar dois pesos e duas medidas no tema da religião e saúde pública, especialmente a saúde mental
Imagine uma equipe interdisciplinar de profissionais, como designers, engenheiros e especialistas em marketing, colaborando desde a fase inicial de concepção até o lançamento de um novo produto. Nesse cenário, todos os membros contribuem ativamente com suas perspectivas únicas, compartilham o conhecimento e assumem a responsabilidade pelo sucesso geral do projeto.
Esta introdução serve para pontuar o sistema de laicidade positiva que existe tanto em alguns países europeus quanto aqui no Brasil. Enquanto nos países ibéricos (Portugal e Espanha), além de Itália e Alemanha, existe uma laicidade do tipo cooperativa, com uma graduação entre as confissões religiosas que mantêm relação mais estreita com o Estado na busca do bem comum, aqui no Brasil temos a laicidade colaborativa, em que, sem reservas entre confissões majoritárias ou minoritárias, todos são vistos como “amigos” e “parceiros” do Estado na busca de atingir o interesse público, de acordo com o artigo 19, I, da Constituição.
Porém, parece que na visão ideologizada da esquerda isso só vale como política pública para alguns, e não para o todo. O governo federal e dirigentes de entidades importantes (como, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia) parecem usar dois pesos e duas medidas no tema da religião e saúde pública, especialmente a saúde mental.
Há poucos meses, conforme comentamos aqui, o Conselho Federal de Psicologia emitiu a Resolução 7/2023, que “estabelece normas para o exercício profissional em relação ao caráter laico da prática psicológica”. No artigo 3.º, VI, diz que é vedado ao profissional de psicologia “associar conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas”. Esta vedação, entre outras constantes do documento, tende a praticamente vedar a associação entre um profissional da psicologia e seu vínculo religioso – banindo da arena pública esta que é uma dimensão essencial da vida humana.
Ou seja: não pode se identificar como religioso; não pode associar técnicas à religião; não pode construir argumentos religiosos aliados à visão científica para a promoção do bem-estar psíquico; não pode ter na religião um aliado à saúde mental. Afinal, a religião, nesta visão, não pode ser fonte de cura.
O IBDR já lançou um parecer sobre o tema, também. Este caso é uma aplicação bem específica do laicismo à francesa, vendo a religião como algo inerentemente ruim, e querendo criar um “espaço seguro contra sua influência” tanto no setting terapêutico quanto na própria identidade de psicólogos e psicólogas de prática e vida religiosa. E, notoriamente, está endereçado a um grupo religioso em particular: os cristãos (meros 88% da população brasileira).
Pois, em sentido oposto, na última semana, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução 715, de 20 de julho de 2023, que “dispõe sobre as orientações estratégicas para o Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde provenientes da 17.ª Conferência Nacional de Saúde e sobre as prioridades para as ações e serviços públicos de saúde aprovados pelo Conselho Nacional de Saúde”.
No Anexo I do dito documento há diversas promoções de viés ideologizado muito forte, de todos os lados, tanto na questão de sexualidade (um tema quase soberano) quanto no combate aos inimigos públicos da esquerda, como o “patriarcado” e o capitalismo, além de falar descaradamente na legalização do aborto e da maconha. O texto parece ter saído de um soviete; é impressionante sua redação, que vale a pena conferir.
Conselho Nacional de Saúde quer adotar, como política pública, o reconhecimento das casas de religião de matriz africana como “equipamentos promotores de saúde e cura”
Mas, para fins da nossa coluna, o que chamou à atenção foi o seguinte:
“(Re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e primeira porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar e com isso respeitar as complexidades inerentes às culturas e povos tradicionais de matriz africana, na busca da preservação, instrumentos esses previstos na política de saúde pública, combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras.”
Ou seja: a proposta de adoção de políticas públicas é enxergar as casas de religião de matriz africana como “equipamentos promotores de saúde e cura”, especialmente “espaço de cura para o desequilíbrio mental e psíquico”, no contexto de “combate à discriminação religiosa”. Será que temos ou não um absoluto desequilíbrio aí?
A uma: entendemos realmente que a religião tem um papel tão importante na vida humana que desconhecemos outra força mais catalisadora do bem-estar a conferir um senso de propósito do que a adesão a uma confissão. Isto vale para toda e qualquer religião que constitua compromisso de consciência para o ser humano. Justamente por conta disso nos insurgimos contra aquela resolução irresponsável do CFP de meses atrás (e, em breve, teremos novidades na Justiça, via IBDR, sobre essa resolução!).
A duas: tratar as casas de religião de matriz africana como parceiras do Estado na promoção do bem comum é justamente a visão que temos da laicidade colaborativa: a religião, no Brasil, deve ser reconhecida (deve porque o Estado assim foi instruído pelo constituinte originário de 1988). Mas isso deve valer para todas as religiões, e não só para algumas!
Ou o Conselho Nacional de Saúde deve incluir todas as organizações religiosas, templos, salões, sinagogas, mesquitas, e reconhecer em todas elas estes “espaços de cura” onde, certamente, vão aliar às práticas espirituais as técnicas psicológicas e a ciência psiquiátrica, ou há uma discrepância muito flagrante entre “laicidade colaborativa” para uns e “laicismo de combate” para outros. Afinal:
Com que base o Estado pode reconhecer algumas religiões como operadoras de políticas públicas e relega outras ao espaço privado? Ainda mais em um Estado laico! Mesmo que seja colaborativa e até por ser colaborativo, todas devem ser reconhecidas e não apenas uma!
Qual é o fundamento para dizer que determinada religião deve ser reconhecida como “espaço de cura” e outras não? Novamente, um Estado laico pode reconhecer a importância da religião, mas, mesmo assim, não a conhece e nem pode a conhecer a ponto de escolher uma em detrimento de outras.
Com que base o Estado pode reconhecer algumas religiões como operadoras de políticas públicas e relega outras ao espaço privado?
Por fim, um governo que sempre defendeu a “ciência” está agora, literalmente, aderindo a uma determinada confissão religiosa como equipamento de saúde?
Isonomia: este é o princípio constitucional que deve ser aplicado aqui, além da característica da igual consideração, inerente à nossa laicidade colaborativa.
Entraremos, nas próximas duas décadas, no teste mais ferrenho de nossa história quanto à religião no espaço público. Que as instituições funcionem, o povo amadureça e os governantes tenham responsabilidade e apliquem em suas políticas públicas a laicidade conforme está no texto constitucional: benevolente, colaborativa e para todos!
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