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Cláudia Leitte, investigada pelo Ministério Público da Bahia por suposto “racismo religioso” ao alterar a letra da música Caranguejo, reacendeu um debate fundamental sobre liberdade religiosa e os limites entre expressões culturais e manifestações de fé. A cantora, que substituiu o verso “saudando a rainha Iemanjá” por “só louvo meu rei Yeshua”, exerceu um direito pessoal ligado à sua consciência religiosa. Essa escolha, no entanto, gerou acusações graves que merecem análise cuidadosa.
Antes de mais nada, é importante distinguir conceitos. Neste caso, alterar uma letra de música pode configurar, no máximo, um ilícito civil, como uma possível infração à Lei de Direito Autoral. Essa questão poderia ser debatida no âmbito do uso de uma obra criativa. Mas tratar essa alteração como um ilícito penal, especialmente sob o argumento de “racismo religioso”, é desproporcional e juridicamente infundado. O racismo religioso pressupõe ações que promovam desigualdade, hierarquização entre crenças e discriminação direta contra praticantes de uma religião, incitando o bloqueio ao exercício de seus direitos. O ato de Cláudia Leitte foi uma expressão de fé, sem qualquer ofensa ou ataque a outros grupos religiosos.
Cláudia Leitte, ao cantar seu “rei Yeshua”, expressou sua devoção pessoal. Isso não pode ser confundido com discriminação
Essa discussão também nos convida a refletir sobre a relação entre cultura e religião. A cultura é frequentemente um derivado da religião, mas não se confundem. Essa distinção está bem marcada na Lei 14.969/2024, que reconhece as expressões artísticas cristãs como manifestações culturais de influência do cristianismo, sem, no entanto, torná-las sinônimas de religião. A fé, em sua essência, é transcendente, enquanto a cultura é a expressão tangível de valores e tradições. Alterar um elemento cultural, como a letra de uma música, não constitui uma afronta direta à religião que inspirou aquela cultura.
A história nos dá exemplos valiosos de como interpretações religiosas podem provocar debates semelhantes. O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, reinterpretou ensinamentos de Jesus à luz do espiritismo, provocando reações diversas. A Tradução do Novo Mundo, produzida pelas Testemunhas de Jeová, revisou a linguagem de passagens bíblicas de forma alinhada às suas crenças doutrinárias. Esses casos, hoje amplamente aceitos como manifestações legítimas de fé, poderiam facilmente ser taxados de intolerância por quem não compreende o direito à liberdade de crença.
O respeito à liberdade religiosa é o pressuposto lógico para que a diversidade possa eventualmente existir, e para que a sociedade possa florescer. Em uma sociedade plural como a nossa, é essencial que todas as manifestações de fé sejam respeitadas, desde que não esmaguem direitos fundamentais de terceiros. É possível acreditar que Deus é o mesmo com nomes diferentes, assim como crer que há um só Deus. A arena pública deve ser de livre trânsito das ideias, e que a verdade prevaleça.
A convivência pacífica exige que compreendamos as diferenças como parte de nossa riqueza cultural e espiritual, e não como ameaças a serem combatidas.
Cláudia Leitte, ao cantar seu “rei Yeshua”, expressou sua devoção pessoal. Isso, em um país onde a liberdade religiosa é garantida pela Constituição, em um espaço garantido para o exercício da fé (a laicidade colaborativa), não pode ser confundido com discriminação. Pelo contrário, a sua escolha reforça a necessidade de convivermos com opiniões e crenças diversas, lembrando que é o respeito mútuo que nos mantém unidos. Afinal, é na liberdade que amadurecemos visões, ideias e apuramos inclusive os olhos da fé.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos