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O meu direito fundamental não termina quando começa o do outro
| Foto: David Mark/Pixabay

Um mantra é uma expressão repetida, como uma palavra, frase ou som, que é entoada de maneira rítmica e contínua. Originados em tradições religiosas e espirituais como o hinduísmo e o budismo, os mantras têm diversas finalidades. Eles podem servir como ferramentas de meditação, concentração e comunicação sagrada.

Ao serem recitados em um ritmo específico e repetidos várias vezes, os mantras são acreditados como forma de invocar energias espirituais, alcançar clareza mental, conectar-se com o divino e manifestar intenções pessoais. Em contextos religiosos, essas palavras repetidas podem representar nomes divinos, princípios filosóficos ou ensinamentos espirituais, buscando direcionar a mente, nutrir a devoção e promover reflexões profundas. Na cidade de Três Coroas (RS), por exemplo, encontra-se um famoso templo budista, o Chagdud Gonpa Khadro Ling. Nele existem as rodas de oração, com mantras religiosos escritos e fixados no seu exterior. Os budistas acreditam que, ao girar a roda, o poder do mantra é ativado, multiplicando-se exponencialmente as bênçãos ali contidas.

Em um sentido mais amplo, fora do contexto religioso, o termo “mantra” também se refere a expressões frequentemente repetidas que têm o propósito de reforçar ideias, crenças ou objetivos. De uns tempos para cá muitos intelectuais de faz-de-conta têm ecoado alguns “mantras civis”. São frases de efeito, repetidas incansavelmente, tentando moldar a realidade, por assim dizer. E o pior é que muita gente boa acaba acreditando nelas. Um desses mantras é o tal do “meu direito termina quando começa o do outro”.

Um direito fundamental nunca pode ser suprimido ou eliminado. Ou seja, ele não pode “terminar” quando começa o de outra pessoa

Pode haver um fundo de verdade em se tratando de direitos civis, especialmente em termos de permissão e obrigação; contudo, o papo é outro em se tratando de direitos fundamentais. Aqui, esta frase funciona como um mantra, jamais como um princípio. Isto porque um direito fundamental nunca pode ser suprimido ou eliminado. Ou seja, ele não pode “terminar” quando começa o de outra pessoa; se fosse assim, perderia a característica que o torna fundamental.

Primeiro, considerar que um direito fundamental termina quando se encontra com outro é admitir que existe hierarquia entre eles. Nenhum direito fundamental é melhor ou mais importante que outro; todos são parte de um sistema coeso de liberdades e garantias que sustentam a força motriz de qualquer sistema constitucional: a dignidade da pessoa humana. Até é costume dizermos que a liberdade religiosa é a mãe ou primeira das liberdades, mas isso se dá em razão de seu processo histórico, e não por ser hierarquicamente superior.

Então, se nenhum direito fundamental é superior ao outro, por que o meu terminaria quando começa o de qualquer outro? Seria este superior ao meu? Na verdade, quando o meu direito fundamental se choca com o do outro, temos um caso de colisão de direitos fundamentais. E, como não existe hierarquia entre pessoas e entre direitos fundamentais, é necessário resolver de outra forma, não simplesmente suprimindo um para preservar o outro.

Isto é muito importante de entender. A supressão de um direito humano para a preservação de outro só seria possível se: a) existisse hierarquia entre os direitos fundamentais ou b) existisse hierarquia entre pessoas humanas, isto é, em razão do meu gênero, cor, etnia, posição social ou sei lá o quê, sou melhor que você, e por isso o meu direito fundamental deve prevalecer e o seu ser suprimido. Seria um absurdo.

A posição “a” não é aceita pela doutrina e tratados internacionais de direitos humanos, como já dito; e a posição “b” é altamente discriminatória e, por si só, absolutamente inviável. Então, o que nos resta? Equilibrar proporcionalmente os direitos colidentes para que ambos permaneçam existindo, sendo exercidos no caso concreto.

É vital preservar os direitos fundamentais em qualquer cenário, mesmo desafiador. Eles existem para proteger a dignidade humana, originando-se após as guerras mundiais para evitar supressões em tempos de conflito. Isso é o cerne da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Nenhum direito fundamental é melhor ou mais importante que outro; todos são parte de um sistema coeso de liberdades e garantias que sustentam a força motriz de qualquer sistema constitucional: a dignidade da pessoa humana

Contudo, no Brasil tem sido diferente. Com o pretexto de que a tua liberdade termina quando começa a minha, os direitos fundamentais decorrentes das liberdades de crença e religiosa estão em risco como nunca estiveram, e a situação só se agrava.

Vamos à liberdade religiosa, por exemplo. Quando existe uma colisão de direitos fundamentais e de um lado está a liberdade religiosa, imediatamente, para muitos, é ela que deve ser suprimida. A necessária harmonização de ambas as liberdades colidentes, por meio de um balanceamento em que, proporcionalmente, ambas são restringidas, preservando-se seus conteúdos essenciais, é deixada de lado. Vigora o mantra de que a liberdade religiosa não é absoluta – mas a outra, que colide com ela, é! Pois suprime-se apenas a liberdade religiosa em razão da superioridade da outra, como se isso fosse possível.

O discurso de ódio, por exemplo, seria o grande limitador da liberdade religiosa. Todavia, esse só pode ser tal limitador quando o discurso é discriminatório; e um discurso só é discriminatório quando o orador se diz superior a outra pessoa, que, em razão disso, deveria ter seus direitos eliminados ou suprimidos (vide o caso Ellwanger no STF). Na verdade, o discurso de ódio é proferido por aquele que quer limitar a fala do religioso para ter seu direito preservado. Ora, considerar seu direito superior e, em razão disso, suprimir o direito do outro é que é discurso de ódio!

O religioso, ao dizer que sua religião é melhor ou que determinada prática é pecaminosa, não está dizendo que ele, enquanto pessoa, é melhor que o outro; tampouco está suprimindo o direito fundamental do outro. Ele apenas está vivendo conforme sua fé, sem impedir o outro de viver conforme quiser.

Dizer que certa prática é pecado não possui o condão impositivo – como se lei fosse – de impedir outra pessoa de praticá-la. Seria impositivo se o religioso ingressasse com uma ação na Justiça para que não se pudesse mais praticar tal ato. Mas o contrário tem acontecido – e muito!

O impedimento de que o fiel viva e defenda os preceitos de sua crença mediante o Poder Judiciário ou por leis já tem se tornado realidade no Brasil; essa, sim, é uma prática altamente discriminatória. Se não existe hierarquia entre direitos fundamentais e entre pessoas, e se o direito de viver minha vida conforme meus dogmas colide com o seu de viver conforme os seus, por que apenas o meu deve ser suprimido? Procurar a Justiça para suprimi-lo é uma forma de discriminação.

Vigora o mantra de que a liberdade religiosa não é absoluta – mas a outra, que colide com ela, é! Pois suprime-se apenas a liberdade religiosa em razão da superioridade da outra, como se isso fosse possível

A colisão entre o meu direito fundamental de dizer que certas práticas são pecados e o teu direito fundamental de ignorar o que estou a dizer, e viver conforme quiseres, está na necessária convivência no espaço público. Podemos discordar frontalmente sobre dogmas, cosmovisão de mundo e maneiras de viver a vida, mas sem discriminar um ao outro, ou seja, podemos considerar nossas cosmovisões superiores, mas nunca pensar que somos humanos superiores – e, principalmente, jamais tentar eliminar o direito fundamental do outro.

Nosso esforço diário deve ser o da convivência e jamais o da eliminação ou supressão do direito fundamental do outro. Conviver em discordância, mas de forma solidária. O termo “solidariedade” – que vem do francês solidarité – significa se identificar com o sofrimento do outro; dispor-se a ajudar a solucionar ou amenizar o problema. Para ajudar o outro não podemos e não devemos renunciar à nossa identidade, inclusive religiosa, até porque é a nossa identidade, inclusive religiosa, que nos impulsiona a ajudar o outro.

Chega de mantras civis: o meu direito fundamental de crer e viver segundo minha crença é tão importante quanto o seu direito fundamental de viver a vida conforme sua visão de mundo. Se um dia eles colidirem no tráfego da vida, nosso desafio será de manter o diálogo e a convivência sem abrir mão de uma vírgula do que acreditamos. Isto é viver com dignidade!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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